Lisboa Triunfante (bibliografia) é um romance fantástico de David Soares de que, por motivos que durante bastante tempo me confundiram, não gostei lá muito.
Mas antes de entrarmos subjetividade adentro, vamos falar sobre o que o romance é.
Trata-se, basicamente, de uma história fantástica de Lisboa, focada num punhado de momentos no tempo, cada um com as suas personagens-chave, umas reais, outras inventadas, e que se estendem desde a pré-história mais paleolítica até ao presente. Entre as personagens, em jeito de homenagem, destaca-se claramente a figura de Aquilino Ribeiro, cujo Romance da Raposa terá decerto sido uma das principais inspirações para este livro.
Quanto à cidade, apesar de ter honras de título, é mais palco que propriamente personagem; palco para uma antiquíssima rivalidade entre duas criaturas sobrenaturais, uma raposa e um lagarto (refletidas nas duas capas que o romance ganhou; a mim calhou a que aqui se mostra). As criaturas, embora possam ser encaradas como encarnações de princípios antagónicos, não caem propriamente na típica dualidade maniqueísta do bem e do mal (e ainda bem), antes se assemelham um pouco aos duendes das histórias folclóricas: espíritos caprichosos e sem moralidade definida, trocistas, que se servem de quem lhes dá na gana para os seus próprios e inescrutáveis fins.
Com este pano de fundo, David Soares aproveita para dar vazão a uma pulsão quase ensaística, em particular quando mergulha nas origens da maçonaria, cuja mundovisão, aliás, está presente do princípio ao fim do livro.
Estruturalmente, é um livro em círculo: começa e acaba no presente, uma opção que me pareceu particularmente feliz e bem conseguida. O resto do romance repete uma estrutura semelhante à usada em A Conspiração dos Antepassados, embora a uma escala muito maior: uma construção muito histórica da trama, com muito pouco de fantástico ainda que com o grotesco, quando não o horror, sempre por perto, e depois, quase no fim, um mergulho numa espécie de submundo mais ou menos infernal. Estrutura semelhante mas não idêntica pois, enquanto em A Conspiração dos Antepassados a trama se desenvolve de forma linear, aqui vai ziguezagueando tempo fora, ora saltando para o passado remoto, ora avançando para um passado bem mais recente, só para em seguida voltar outra vez para trás.
Trata-se, portanto, de um romance sofisticado, bem pesquisado, bem concebido, em geral bem escrito (há um punhado de falhas neste capítulo, que me divertiram por motivos cá meus, mas que na verdade não comprometem), ainda que algo pretensioso em excesso, característica que o impede de ser tão bom como poderia ser. O certo é que, somando-se tudo isto, o livro deveria ter-me agradado bastante.
No entanto, não foi isso o que aconteceu.
Na verdade, terminei a leitura sem perceber lá muito bem se tinha gostado ou não (acabei por decidir que sim, mas pouco). É que houve partes do livro de que gostei mesmo muito e outras que me aborreceram de morte.
E depois levei muito tempo a dar voltas à cabeça para tentar perceber ao certo porquê.
Ter-se-ia a minha forte antipatia pessoal pelo autor imiscuído na avaliação da leitura? Pensei nisso, cheguei a achar que sim, mas acabei por decidir que não; acho magníficas algumas obras de gente que me é antipática, e não tenho a mínima dificuldade em admiti-lo, a mim próprio ou a terceiros... além de que, se fosse esse o motivo do pouco gosto, ele seria bem mais uniforme ao longo de todo o livro. Certamente não haveria partes dele que me tivessem agradado tanto como agradaram.
Teria sido o meu desinteresse e muita falta de paciência para temas herméticos a ter influência no escasso gosto na leitura? Sim, isso teve influência, mas quanto mais pensei mais me convenci de que não foi este o fator principal. Então que fator foi esse?
Chegado a este ponto, pus-me a refletir sobre quem sou como leitor. E foi aí que descobri a chave para o problema.
Em adolescente, houve uma fase de alguns anos em que só li ficção científica (e alguma fantasia que nessa época era disfarçada de FC para se conseguir vender... como as coisas mudam). A essa fase seguiu-se outra de omnivorismo, em que li de tudo, umas coisas com agrado, às vezes muito, outras com pouco ou nenhum. Foi nessa altura que me comecei a definir como leitor e que aprendi que, embora a ficção científica não fosse o alfa e o ómega literário que anos antes julgava ser, havia géneros e abordagens que decididamente não eram para mim.
Ora, entre aquilo de que menos gosto, desde sempre, conta-se a ficção histórica... e ao refletir sobre este livro, comparando-o com leituras anteriores, tomei consciência de que o tipo de ficção histórica de que não gosto mesmo é aquela que traz figuras históricas reais para a ribalta do protagonismo. Ou seja, embora possa gostar de alguma ficção histórica que seja declaradamente mais ficção do que história, que aproveite a história como cenário para personagens, acontecimentos e interações inteiramente ficcionais, tenho uma enorme dificuldade em engolir aquela ficção histórica que como que se arvora em história propriamente dita, em especial se para isso usa pessoas verdadeiras do passado. Não consigo suspender a descrença; por estranho que possa parecer, acredito mais facilmente em personagens ficcionais por inteiro do que na ficcionalização de personagens reais. É possível que se trate de alguma espécie de mecanismo psicológico semelhante ao vale da estranheza (talvez o conheçam melhor como uncanny valley), não sei bem. E no fundo, pouco importa a origem, o que realmente conta é o efeito.
Pois foi quando confrontei esta minha característica com as várias partes do livro que descobri o motivo principal para ele me agradar tão pouco. As partes de que gostei mais (o início, o fim, a parte que se desenrola na pré-história e até certo ponto o mergulho no submundo fantástico) pouco ou nada têm desse tipo de ficção histórica; já as partes que achei mortalmente chatas e só consegui ler com um esforço quase físico praticamente não têm outra coisa. O miolo do livro mergulha, ao longo de bem mais de metade da extensão total da obra, nessa espécie de vale de estranheza (se é que é mesmo disso que se trata) que me encheu de um imenso tédio. Foi violento. Só não pus o livro de lado por pura teimosia.
A-ha! Tem de ser isso.
No fim de contas, estou muito contente por ter lido este livro. Não gostei lá muito dele, é certo, mas foi uma ferramenta inestimável, devido à sua própria estrutura, para me compreender melhor enquanto leitor e talvez até enquanto pessoa. Já tenho dito que aprendi a traduzir lendo más traduções para ver como não se faz. Pois bem: este foi outro caso em que uma experiência desagradável de leitura acabou por se revelar de enorme utilidade.
Creio que nem vale a pena esclarecer, por ser tão óbvio, que nada nesta apreciação íntima da minha relação pessoal com o livro o torna mau. Não é: é bom. Não creio que chegue a ser excelente, mas não tenho dúvidas de que é bom. Julgo, no entanto, que não voltarei a pegar em mais nenhum romance do David Soares, visto que também não gostei tanto como deveria ter gostado de A Conspiração dos Antepassados, e só agora percebi realmente porquê: o motivo é o mesmo. Tenho cá em casa um livro de contos ainda não lido (e é de contos o livro dele que mais me agradou), e esse lerei, espero que com agrado, mas desconfio que quanto a romances estamos conversados.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de abusadores. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.