Os números contam muitas histórias, embora seja conveniente saber lê-los para que as histórias que contam sejam verdadeiramente compreendidas. É de números que se faz a ciência, ainda que não toda a ciência (mas cada vez mais), e os números também são fundamentais para quando queremos pensar a sério em outras áreas da vida humana.
Recentemente, tem havido por este mundo fora, mas muito em particular, pela virulência utilizada, nos Estados Unidos, quem defenda que já não é preciso maior promoção da participação feminina no âmbito da literatura fantástica, quando não dizem mesmo que já se foi longe de mais, que já está tudo despido de "virilidade" e entregue a "mariquices". Isto ouve-se mais nos EUA, mas também se ouve noutras latitudes, inclusive, por vezes, nas de língua portuguesa. O Brasil, sim, mas também Portugal.
Para contrapor a essas ideias usam-se com frequência números. Porque os números, só por si, as destroem. E eu tenho, no Bibliowiki, uma ótima fonte de números. Querem ver?
Neste momento estão listados no Bibliowiki um total de 3930 autores de ficção científica, fantasia, horror e outras vertentes da literatura fantástica publicados em língua portuguesa. Ainda faltam muitos, é certo, mas a amostra é grande e tudo indica que representativa. Sabem quantos desses autores são mulheres? 939. Cerca de um quarto do total.
(Curiosamente, no momento em que escrevo estas linhas, há exatamente o mesmo número de tradutores e de tradutoras: 658. A minha profissão é igualitária, mas isso não apaga a desproporção nos outros números.)
Mas há contas ainda mais interessantes.
Quem leu livros como O Homem Invisível ou histórias como O Homem que Vendeu a Lua está habituado a títulos iniciados com "O Homem Que" ou "O Homem," que são um reflexo óbvio do género que protagoniza as histórias. Esses títulos são muito comuns na literatura fantástica em geral e na de ficção científica em particular, e o Bibliowiki tem neste momento um total de 214 páginas que começam por "O Homem".
Sabem quantas começam com "A Mulher"?
Não fazem uma ideiazinha?
OK, eu digo.
São 23.
Sim. Vinte e três.
Com números destes nas mãos, quem poderá em sã consciência defender que já se fez tudo o que há para fazer pela igualdade de género no âmbito da literatura fantástica?
E sim, é verdade, nem tudo é responsabilidade dos homens. A menor participação feminina é um facto, e o Infinitamente Improvável que o diga. Mas, francamente, temos no mínimo dos mínimos a responsabilidade de não apregoar disparates. Sim, nós, os homens, continuamos a ser grandemente dominantes no género, o que é tanto mais bizarro quanto é bastante evidente que elas leem mais do que nós (basta olhar para o Goodreads) e sim, há ainda muito a fazer para se começar a equilibrar as coisas. Assumamos isso de uma vez por todas com total clareza.
Até porque bebés chorões de um metro e setenta, que berram que lhes estão a roubar os brinquedos, não merecem o respeito de ninguém.
Eu nao sou a favor de forçar números com base em género. Ou seja, forçar a publicação de mais obras de autoras só para igualar, mesmo que em qualidade nao seja o caso. O que eu sou a favor é de se mudarem as mentalides desde pequenos. Mostrar às raparigas que matematica, física e ciencias nao sao areas masculinas. Mostrar que programação e investigação são areas abertas para todos os que tenham um cerebro. A minha teoria é que, abrindo as possibilidades na mentalidade, essas percentagens vao evoluir. Infelizmente, acho que tal ainda vai demorar.
ResponderEliminarEu também tinha essa opinião, mas depois percebi que o preconceito cria barreiras adicionais às mulheres numa série de árias. Ou seja: não é só a falta de vontade ou qualidade a agir, é também uma atitude de menorização das mulheres por serem mulheres, que não lhes dá as mesmas oportunidades. Isto não acontece da mesma forma e com a mesma força em todas as áreas, há até setores em que as coisas estão bastante equitativas e outras em que as mulheres levam vantagem, mas acontece ainda demasiado.
EliminarNo caso a que o post se refere, temos os efeitos combinados da menor participação feminina atual (as autoras estão demasiado concentradas na fantasia urbana e no YA) e de uma história de preconceito, que levou até autoras a mudar de nome, como a Andre Norton, ou a usar iniciais neutras, como a A. C. Crispin. E estamos ainda bastante longe de ultrapassar esses problemas.
Mas há malta que acha que não, que já está tudo nas mãos do gajedo. Os cachorrinhos, tristes ou raivosos, por exemplo. Mas não só.