Lisboa no Ano 2000 (bibliografia) é uma antologia de ficção científica organizada por João Barreiros, mas não uma antologia como as outras. Normalmente, quando se pensa numa compilação de contos de vários autores, pensa-se em contos isolados ou englobados de uma forma mais ou menos coerente num tema genérico. Aqui, a ideia é outra. Aqui, a ideia é a construção de um universo partilhado, dentro do qual os autores desenvolvem as suas ficções.
Não é inédito, claro. Não só tem antecedentes lá fora, como já tínhamos exemplos na ficção científica de língua portuguesa, entre os quais se destaca o projeto Intempol, idealizado por Octavio Aragão. Mas em Portugal, que eu saiba, é a primeira vez que se faz algo do género e o resultado é francamente bom.
Aqui, o fulcro é uma ideia do João Barreiros, que pegou nas especulações futuristas de vários autores da viragem do século XIX para o XX, que imaginavam futuros dominados pela tecnologia de ponta do tempo, a eletricidade, temperou-a com doses generosas das suas obsessões literárias, tirou o chapéu, a boina, o barrete e o capachinho a Nicola Tesla, enquanto lhe fazia uma profundíssima vénia, misturou tudo com outras ideias meio espiritualistas, muito em voga entre finais de oitocentos e inícios de novecentos, e criou um universo ficcional sólido o suficiente para servir de alicerce para outros autores nele e com ele brincarem.
E eles fizeram-no em geral bem, criando — não que a competição seja muita — o melhor livro retrofuturista português.
Retroquê, perguntam? Retrofuturista. É uma forma de ficção científica que reimagina passados, presentes ou futuros possíveis (ou nem tanto) se a evolução tecnológica tivesse seguido caminhos diferentes daqueles que seguiu no mundo real. E subdivide-se numa profusão de subgéneros. Ficções em que a forma dominante de maquinaria funciona a vapor (e/ou, funciona segundo os princípios e/ou a estética dominantes na época do vapor) são ficções steampunk; ficções inspiradas pela era atómica chamam-se atompunk, e por aí fora.
Aqui, temos um presente (bem... um passado próximo) alternativo em que, espiritualismo à parte, tudo tem inspiração nos aparelhos elétricos dos pioneiros do aproveitamento da energia elétrica para uso humano. Ou seja, tudo isto é retrofuturismo eletropunk tingido de horror.
Ao longo de vários anos, fui dizendo que a melhor antologia de ficção científica e fantástico escrita originalmente em português que eu conhecia era a Por Universos Nunca Dantes Navegados, justificando a opinião com a inexistência nela de maus contos, coisa demasiado rara nas nossas antologias, e com o equilíbrio na qualidade das histórias. Com a publicação de Vaporpunk, a Universos perdeu o Brasil mas manteve-se dominante em Portugal. Teve um abanão quando saiu Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa mas resistiu porque, embora esta seja francamente boa enquanto trabalho de edição, a qualidade de demasiados dos seus contos deixa bastante a desejar. Mas não resistiu a Lisboa no Ano 2000.
Porque Lisboa no Ano 2000 também não tem contos maus. Porque tem uma mancheia de contos bons ou muito bons. Porque os melhores são de melhor qualidade média do que os melhores da Universos. Porque, ao contrário da Universos, Lisboa no Ano 2000 é mais do que a mera soma das histórias que a compõem.
Lisboa no Ano 2000 é um livro bastante bom. Mesmo que algumas destas histórias mostrem falhas, mesmo que alguns dos autores estejam ainda bastante verdes, ombreando com outros muito mais experientes e com muito maior domínio de todos os aspetos da arte de contar histórias, há um patamar mínimo de qualidade que está sempre presente, há uma estrutura que ajuda a disfarçar ou pelo menos a apoiar fragilidades e há algo que está ausente de quase todas as antologias que eu já li: a sensação de que restam ainda muito mais histórias para contar no complexo mundo aqui criado. Também isso é bom.
E como, mesmo sendo maior que as partes, a antologia não deixa de as ter, eis o que achei dos contos individualmente considerados:
Este livro foi comprado.
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