Se julgam que a chico-espertice é coisa exclusivamente portuguesa, desenganem-se. O Alfaiatinho Valente, teutónica história construída a partir de elementos razoavelmente díspares — mas nos quais a chico-espertice já estava bem presente — pelos não menos teutónicos Irmãos Grimm, demonstra cabalmente que o fenómeno está bem disseminado e é antigo. Pois o alfaiatinho que protagoniza esta história é, além de valente, coisa que realmente até é, um chico-esperto do mais típico que existe, intrujão e gabarolas como poucos. E, pior, sai-se bem de todas as peripécias, sempre tingidas de vigarice, meio por mérito próprio, por uma questão de agilidade mental, autoconfiança e até agilidade física, meio por pura sorte. Sai-se tão bem, na verdade, que de modesto alfaiate acaba em rei, depois de intrujar gigantes — que mata —, soldados, o próprio rei, toda a gente e alguma não gente.
Para mim, o mais interessante desta história são as conclusões a que se chega quando se coloca nos pratos da balança ideológica a sua óbvia imoralidade de base com a vontade, claramente expressa pelos autores destas histórias, de criar uma espécie de corpus de histórias exemplares, com propósitos educativos, baseadas nas lendas e histórias folclóricas que foram encontrando pela Alemanha fora. Torna-se premente a interrogação: que exemplo pretenderiam eles dar com uma história destas? Que a ambição justifica todos os meios? Que ser espertalhão é uma virtude superior a qualquer outra... desde que não se seja apanhado?
E refiro-me aqui aos Grimm, mas podia referir-me de forma igualmente apropriada ao caldo cultural que produziu tais pérolas, pois através das notas que acompanham o conto (como é de norma nesta edição) percebe-se claramente que esse elogio à chico-espertice inescrupulosa já estava bem presente no material de base, embora os Grimm nada tenham feito para a atenuar, muito pelo contrário.
Pensando bem, isto é capaz de explicar uma parte razoável da Europa de hoje.
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