quinta-feira, 22 de abril de 2010

Vasco Graça Moura: de asneira em asneira até ao descrédito total

Vasco Graça Moura adora insultar o acordo ortográfico, a nova ortografia e, por extensão, quem o elaborou e quem o utiliza. Fá-lo num estilo carroceiro que já se vai tornando habitual, embora na televisão tenda a suavizá-lo relativamente aos ataques de verborreia insultuosa que tem por escrito. E utiliza "argumentos" que vai alterando ao longo do tempo, à medida que, uns após outros, vão sendo escavacados pela realidade.

Parece que agora foi à TV mandar mais uns bitaites. E, claro, o asneirame não podia faltar.

Mas o que mais disse foi uma enorme quantidade de frases de efeito vazias de conteúdo. Que a nova ortografia é "incompatível com a dignidade da língua portuguesa" (porquê? em quê?) e com a "identidade do nosso país" (desculpe?!), etc., etc. Não vale a pena perder tempo com este tipo de palavreado: como tais afirmações não estão substanciadas, não têm conteúdo, não há ponta por onde pegar-lhes para uma refutação.

Mas nas asneiras, há. Vamos a elas.

Diz o Graça Moura que "o acordo é completamente desajustado à forma como falamos a nossa língua". Os factos, porém, afirmam precisamente o inverso. Os factos dizem que nós pronunciamos o c de facto, razão pela qual ele se escreve e não pronunciamos o c de acto, razão pelo qual ele desaparece. Os factos dizem que nós não pronunciamos o p de acepção, razão pela qual podemos deixar de o escrever e os brasileiros pronunciam, razão pela qual podem continuar a escrevê-lo. Os factos dizem que o acordo é finalmente ajustado ao modo como realmente falamos a língua hoje, não ao modo como falávamos a língua na época em que todas essas consoantes mudas que herdámos por presunção pseudo-etimológica não eram mudas.

Diz o Graça Moura que "o acordo vem desfigurar a maneira de pronunciar". Os factos, porém, afirmam que casos comprovados em que o modo como as palavras se escrevem teve algum impacto no modo como as palavras se pronunciam praticamente não existem. Porque uma língua é uma construção oral que tem uma vertente escrita que procura adaptar-se até certo ponto à oralidade, e não o contrário. Ninguém aprende uma língua materna por escrito: as suas regras, incluindo as da pronúncia, são-nos transmitidas anos antes de aprendermos a ler pelos nossos pais e demais ambiente. Quem pense o contrário não percebe nada do fenómeno linguístico humano. Nada.

Diz o Graça Moura que "é completamente inválido o protocolo modificativo, que prevê que apenas três países subscrevam e ratifiquem, para depois se aplicar aos restantes". Os factos, no entanto, são: o protocolo modificativo (que na verdade são dois, mas o segundo basicamente anula o primeiro) modifica uma cláusula do acordo fazendo com que ele entre em vigor no plano internacional com três ratificações, e foi assinado por todos os países lusófonos. Por todos. Com três ratificações, que já existem, entrou em vigor. Logo é válido. Mas o facto de estar em vigor no plano internacional não implica que entre em vigor internamente — para isso é preciso que os países ratifiquem o acordo. Faltam dois: Angola e Moçambique. Assinaram o acordo e ambos os protocolos, mas ainda não os ratificaram. Logo, ainda não aplicam a nova ortografia porque, ao contrário do que o Graça Moura pretende desonestamente fazer crer, não existe aqui nenhuma imposição seja de quem for sobre seja quem for.

Diz o Graça Moura que com o acordo "desapareceu a ortografia, a maneira correcta de escrever, para ficar tudo ‘à vontade do freguês’". A asneira aqui é tão gritante que quase não se acredita que alguém possa dizer uma barbaridade destas. Porque a mera existência do acordo, que define um conjunto alargado de regras sobre a forma de se escrever a língua portuguesa, prova que há uma maneira correta de escrever. Escreve-se corretamente a língua portuguesa seguindo-se as regras prescritas no acordo ortográfico. Óbvio para qualquer criancinha.

Esta não é asneira, propriamente, mas também mostra o grau de incompreensão do Graça Moura relativamente ao acordo. Pergunta, com base nas diferenças ortográficas que o acordo prevê, "onde está a unidade ortográfica". Eu explico, caro vate. Quando se fala em unificação ortográfica não se pretende, nem nunca se pretendeu, dizer que toda a gente passaria a escrever exatamente da mesma maneira. Pretende-se dizer, isso sim, que o português deixará de ser a única grande língua do mundo com duas grafias oficiais e mutuamente exclusivas para entrar numa situação semelhante, por exemplo, à do inglês, em que as diferenças ortográficas, que existem na prática, não estão reguladas por via legislativa, o que quer dizer que as pessoas podem usar, se bem o entenderem, as regras informais do país anglófono X no país anglófono Y. A consequência disto é que o inglês tem uma espécie de ortografia unificada (no sentido em que pode ser usada por todos) com variações regionais reguladas pelo uso. E é precisamente isso que o português passa a ter.

Mas voltemos às asneiras de bradar aos céus.

Diz o Graça Moura: "E acha natural que se suponha que eu tenha que saber como se pronuncia a minha língua no Brasil, por exemplo, para saber como a hei-de escrever? Porque tem de se saber onde é que se pronuncia o ‘p’ e o ‘c’, nas várias formas ditas cultas de português [...], tenho de saber como se fala a minha língua num país estrangeiro para poder escrever a minha própria língua?" Outro disparate monumental. Não, caro vate, não tem de saber como se pronuncia a sua língua no Brasil nem noutro sítio qualquer. Assumindo que se considera culto, e não tenho qualquer dúvida de que realmente se considera culto, e muito, basta-lhe saber como você pronuncia a sua língua para saber como você a escreve. Basta-lhe saber como é a pronúncia culta no seu país para saber que facto leva c e ato não o leva, que egípcio leva p e adoção não o leva. Se se quiser estar nas tintas para tudo e todos os outros falantes de português, faça favor de o escrever como você o pronuncia. Nada mais.

Finalmente, diz o Graça Moura: "Por isso, quando estão lá um ‘p’ ou um ‘c’ ditos mudos (impropriamente chamadas consoantes mudas), estão lá porque têm uma função, que é a de abrir a vogal que as antecede. Isto é absolutamente fundamental." Isto é absolutamente errado. Parte outra vez da supina asneira de se pensar que as línguas se aprendem lendo, confunde causa com efeito e omite que parte das vogais que antecedem consoantes mudas são (surpreeesa!) fechadas. Mas disso já eu falei noutros sítios. E agora tenho de ir almoçar.

Ah, Graça Moura, Graça Moura. De asneira em asneira até ao descrédito total.

2 comentários:

  1. Referes «casos comprovados em que o modo como as palavras se escrevem teve algum impacto no modo como as palavras se pronunciam praticamente não existem.» Só conheço um ("sc" etimológico em "nascer" etc), e esse ocorreu com a ortografia de 1911 e em condições históricas irrepetíveis.

    Nada de semelhante foi introduzido de novo na ortografia atual, antes pelo contrário.

    ResponderEliminar
  2. Precisamente.

    E no entanto a falácia é repetida, e repetida, e repetida, como se de verdade incontestável se tratasse.

    ResponderEliminar

Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de abusadores. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.