sexta-feira, 9 de julho de 2010

Lido: Aventuras de João Sem Medo

Aventuras de João Sem Medo (bib. - muito incompleta à data deste post) é um pequeno romance de José Gomes Ferreira que, apesar de ter sido publicado em 1963, começou a nascer muito antes, nas páginas de um jornal chamado O Senhor Doutor, em 1933. Nessa época não era um romance mas sim um conjunto de contos com o mesmo protagonista, precisamente o João Sem Medo do título, que vai viajando e se vai aventurando por uma série de territórios maravilhosos depois de ter abalado da sua aldeia (com o curioso nome de Chora-Que-Logo-Bebes) e saído do país a salto... por cima dum muro.

O romance é, pois, aquilo a que nos terriórios anglófonos se costuma dar o nome de fix-up e que não tem, que eu saiba, designação própria em português, talvez pela raridade do fenómeno nas nossas letras: um romance que é construído através da junção de histórias anteriormente autónomas. Nem todas as histórias de João Sem Medo foram aproveitadas para construir as suas Aventuras (e muito eu gostaria de deitar as mãos aos contos originais!), mas as que foram contam uma história mágica repleta de personagens dos contos de fadas (e de algumas situações de contos tradicionais, também). João Sem Medo, adequadamente intrépido, vai-se metendo em sarilhos e desembaraçando das situações mais desesperadas que chegam mesmo, a dado ponto, à desmaterialização completa da personagem.

Quem julgue pelas referências ao maravilhoso, à magia e aos contos de fadas que se trata de um romance infantil, acerta. Mas só na medida em que As Viagens de Gulliver são um romance infantil. Isto é: tal como a obra de Swift, também a de José Gomes Ferreira pode ser perfeitamente lida por crianças, que dela compreenderão a camada mais superficial e apreciarão o humor e a magia aparentemente disparatada que contém. Mas Gulliver é agente das observações cáusticas e satíricas do seu criador sobre a sociedade inglesa, que só adultos têm bagagem suficiente para compreender, e de igual modo José Gomes Ferreira usa o seu João para fazer crítica social, para apresentar podres e ridículos, para gozar com aquilo que o rodeia no portuguesismo reinante. A começar pelo nome da aldeia natal do protagonista, e até pelo nome deste,  rapaz sem medo no meio de poltrões, e a acabar no que ele faz quando finalmente regressa a casa.

O paralelismo com Swift, no entanto, só é válido até certo ponto. A obra deste é muito mais incisiva, muito mais corrosiva, muito mais sistemática na denúncia da sua sociedade. Gomes Ferreira é mais brando, intercala momentos de acidez com passagens de simples poesia, tem um humor menos agressivo. Mais português, provavelmente. Para isso contribui a forte presença da fábula no seu livro, que não existe tão marcada no de Swift. E também, provavelmente, o facto de os contos originais não terem todos o mesmo tom. Nota-se, mesmo com eles retrabalhados em romance, diferenças significativas de atitude, de abordagem, entre uns e outros. A história da obra condiciona a obra.

Mas é um livro muito interessante, e bastante invulgar no contexto do fantástico português. E também muito esquecido por quem se dedica a esta forma literária. Desconhecido, talvez? Por José Gomes Ferreira "não ser dos nossos"? O mesmo tipo de fenómeno que leva alguns a renegarem Saramago? Talvez. Mas se assim for, é uma grande injustiça que lhe fazem.

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