Neuromancer (bibliografia) é um celebérrimo romance de ficção científica escrito por William Gibson em 1984 e que, não tendo propriamente inaugurado o subgénero do ciberpunk, foi certamente um dos dois livros que mais contribuíram para o cristalizar num conjunto definido de estilos e abordagens. O outro terá sido a antologia Mirrorshades, organizada por Bruce Sterling e publicada dois anos mais tarde.
Consequentemente, é um livro que já foi escalpelizado até à exaustão. Já sobre ele se deverá ter dito tudo o que há para dizer. Podia simplesmente parar por aqui e mandar-vos ler o que outros escreveram, pois alguns terão certamente escrito coisas muito acertadas. Mas não: vou tentar falar dele mesmo assim. Começando com umas notas muito básicas para quem não o conhece.
Neuromancer apresenta-nos tudo o que se veio a tornar cliché no ciberpunk. Um foco grande sobre o estilo, não só pessoal, das personagens, como também literário, do autor (ainda que não me pareça que este último tenha sido vertido com inteiro sucesso para português por esta tradução brasileira que li; quando vejo personagens, numa tradução, a falar em "proteger o rabo", fico de pé atrás, e a paixão de um tradutor por notas de rodapé, muitas totalmente desnecessárias, tem o mesmo efeito — por outro lado, há que reconhecê-lo, o desafio não era nada simples). Um estilo que tem muito (demasiado?) a ver com moda. Personagens que são como baratas, habitando num submundo feito de crime e drogas, mas capazes de entrar em todos os recantos das redes informáticas (não por acaso, aqui apelidadas de matrix; os filmes dos Wachowski são fortemente inspirados por este livro) devido à sua proficiência tecnológica, etc. E conta a história de uma dessas intrusões, levada a cabo por Case, o protagonista, uma das tais baratas, contratado, ajudado e dirigido por misteriosas personagens que se vem mais tarde a compreender tratar-se de inteligências artificiais... inteligências artificiais em conflito.
É um livro em grande medida vítima do seu próprio sucesso; ao definir um padrão para um subgénero, foi também sendo transformado em repositório de clichés à medida que as ideias que propõe foram sendo usadas e reutilizadas até à exaustão em outras obras. Lido hoje, a frescura e novidade que incontestavelmente apresentou aquando da publicação original já mal se vislumbram. O estilo (não tanto o literário, mas todo o outro) tornou-se tão bafiento e, sim, foleiro como os colarinhos abertos do disco sound. E o enredo, se em tempos idos teria provavelmente apresentado reviravoltas de tirar o fôlego, hoje segue quase só o caminho que o leitor já espera.
E além disso, há a pequena questão de vivermos hoje num presente que tem muito de ciberpunk, embora seja diferente do ciberpunk imaginado pelos escritores de ficção científica de há vinte anos em alguns aspetos fulcrais. Os anacronismos aparecem inesperadamente ao virar algumas esquinas, a par de realidades ficcionais que parecem estar hoje tão distantes no futuro (ou até mais) como há vinte anos. Para dar um exemplo: parte significativa da ação desenrola-se em órbita, num conjunto de estações e naves espaciais aglomeradas num dos pontos de Lagrange. Continua a ser pura ficção científica, e sem grandes sinais de deixar de o ser num futuro razoavelmente próximo. O mesmo, arriscaria dizer, se aplica a verdadeiras inteligências artificiais.
Lido hoje, Neuromancer é um livro prematuramente envelhecido. Tão fruto do seu tempo como os ombros enchumaçados, as calças justas ou as permanentes. E é essa, parece-me, a sua maior fragilidade conceptual. Ao ceder à tentação de acompanhar a moda, que por natureza é insubstancial, superficial e em grande medida arbitrária, o ciberpunk colou-se de tal forma à época em que foi produzido que envelheceu ainda mais depressa do que é hábito na FC. Fazê-lo na literatura realista, contemporânea, é diferente de fazê-lo na FC: aquela pretende retratar o presente, e quando o presente se transforma em passado permanece enquanto retrato desse passado; esta, pelo contrário, fala do presente (e por vezes do passado) através do retrato de um futuro possível. É uma parábola que funciona melhor quando o futuro se mantém credível enquanto tal. Quando deixa de o ser, abrem-se fendas no edifício, que vão alargando até que este acaba por ruir.
Daí que se diga com frequência que o ciberpunk morreu. Não que seja hoje impossível criar histórias interessantes e válidas com alguns dos seus ingredientes. Não é. Mas ao ler este livro hoje, tornou-se-me claro como o ciberpunk que Gibson aqui definiu é indissociável dos anos 80 e do início dos 90. E como temas e ideias bem mais antigas na ficção científica lhe dão mais vida do que aqueles que são característicos do ciberpunk.
No entanto, apesar de mostrar alguma ferrugem nas ligações dos cabos óticos, embora comece com uma imagem que dentro de alguns anos ninguém vai conseguir compreender (que raio é a cor de uma TV ligada num canal fora do ar?, pergunta o filho da era da televisão digital), a verdade é que ainda se consegue perceber o impacto que este romance teve na sua época. Foi uma pedrada no charco, e ainda se vê porquê. E isso faz com que não seja, e provavelmente nunca venha a ser, um livro mediocre. Pessoalmente, depois de me colocar no esquema mental dos anos 80, acabei por gostar bastante dele.
Não sei é até que ponto isso é possível a quem não viveu a década. Provavelmente não é.
Este livro foi uma oferta privada, de alguém que nada tem a ver com nenhum dos envolvidos na sua produção e comercialização.
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