Uma constante da literatura ocidental (e não só ocidental, diga-se de passagem) é a apropriação e reimaginação de antigas lendas populares pelos escritores, grandes e pequenos. Algumas dessas lendas funcionaram como sementes de que brotaram autênticas e frondosas árvores, e aqui ia adjetivar com literárias mas a verdade é que elas muitas vezes extravasam a literatura. Em alguns casos, géneros inteiros nasceram delas — é bem conhecida a influência que as sagas nórdicas tiveram na fantasia épica, por exemplo — e acontece com frequência que as adaptações, releituras ou reimaginações acabem por eclipsar as lendas que lhes deram origem (ao mesmo tempo que as perpetuam, paradoxalmente).
A história de Fausto, uma antiga lenda alemã sobre um erudito entediado que vende a alma ao diabo em troca de conhecimento ilimitado e prazeres terrenos, muitas vezes adaptada e interpretada antes disso, ganhou especial notoriedade após a sua adaptação a teatro em verso por Goethe, um dos fundadores das letras alemãs. Depois, tudo e mais alguma coisa serviu de veículo para adaptações ou inspirações faustianas: óperas, sinfonias, teatro, cinema... e, naturalmente, literatura. Literatura fantástica. Não direi que sempre, pois não conheço tudo, mas pelo menos a esmagadora maioria das obras o é.
O Verdadeiro Dr. Fausto (bibliografia) é mais uma dessas adaptações. Há um detalhe, porém: Michael Swanwick, o autor, é um escritor que se notabilizou principalmente na ficção científica, e é a linguagem da FC que ele traz para o mito de Fausto. Ele presta-se a isso, convenhamos: a ideia de que a venda da alma pelo erudito resulta na sua obtenção de conhecimento ilimitado abre desde logo a porta à exploração do mito pela ficção científica, pois o conhecimento, a sua evolução e a tecnologia que ele traz por arrasto (e as mudanças sociais que as evoluções tecnológicas precipitam) são o principal material de que é feita a FC. Em consequência, o Mefistófeles de Swanwick não é propriamente a criatura demoníaca e sobrenatural que se esperaria encontrar, mas sim uma espécie de alienígena tecnologicamente avançado (e muito, muito iconoclasta; e muito, muitíssimo sádico), que comunica com Fausto por intermédio de uma espécie de portal espaçotemporal.
E Fausto é de facto muito verdadeiro, no sentido de seguir fielmente a personagem da lenda, mas também de ser um homem credível do tempo em que Swanwick o coloca: um tipo intratável, insultuoso para com os que encara como inferiores (toda a gente, basicamente), mas ao mesmo tempo brilhante, dono de uma curiosidade insaciável, à semelhança de qualquer grande nome da ciência renascentista, agudamente consciente das insuficiências da sua época. Quando a mefistofélica criatura lhe propõe o trato, nem tenta resistir, reconhecendo de imediato o imenso potencial dos conhecimentos científicos de que ela dispõe, pondo-se logo a fazer planos para melhorar isto e aperfeiçoar aquilo. É aqui que os antecedentes ciencioficcionais de Swanwick mais contribuem para destacar das demais esta adaptação do mito, pois enquanto estas se ficam quase sempre pelos dilemas interiores do protagonista, a de Swanwick cedo se volta para o impacto social do conhecimento acabado de chegar ao mundo.
Não que este impacto seja grande, pelo menos de início. Fausto é ingénuo o suficiente para julgar que os factos e ideias revolucionários que Mefistófeles lhe fornece vão ser acolhidos pelos demais com algo que não seja chacota e rejeição, e o início do romance é uma história de desilusão e raiva impotente contra a estupidez do mundo, o qual, por seu turno, olha Fausto com a condescendência vagamente apiedada que se concede aos loucos.
Mas a verdade científica tem esta curiosa característica de acabar sempre por prevalecer (e é pena que pareça ser preciso ler autores de ficção científica para se ter contacto com obras que reconheçam totalmente este facto) e, aos poucos, Fausto vai conseguindo arranjar maneiras de aplicar os conhecimentos que lhe são oferecidos de formas que nem o mais obtuso é capaz de negar. Claro: os problemas nunca cessam e aí surgem as inevitáveis acusações de bruxaria. Mas também isso é ultrapassado e, com o auxílio sempre irreverente de Mefistófeles, que parece estar a fazer uma experiência sociológica muito sua, Fausto acaba por dar origem a uma revolução industrial antecipada, o que faz também com que o romance entre pela história alternativa. E por fim...
Mas não, vou deixar o fim para os leitores do livro.
Porque acho mesmo que devem ler o livro. Vale muito a pena. Quer se aprecie ficção científica, quer se queira ter uma visão mais abrangente do que se pode fazer a partir dos mitos faustianos, ou de literatura popular em geral, quer se tenha um sentido de humor capaz de apreciar uma dose considerável de iconoclastia, quer se tenha tendências filosóficas, quer se alimente interesse por sociologia, quer se goste de boa literatura, este é livro que vale muito a pena ser lido. É um livro francamente bom, uma daquelas ficções científicas que não precisa de estar permanentemente a atirar à cara do leitor que se trata de FC mas que não é por isso que funciona pior tanto como FC quando como literatura tout court.
Este livro foi comprado.
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