sexta-feira, 28 de maio de 2004

Spam Fiction (3)

A triste sina de uma rapariga triste


Baseado num spam intitulado "I'm a sad girl..."


Sou uma rapariga triste.
O Robinho não gosta de mim.
Oh, sim, já fiz tudo. Mandei-lhe mensagens animadas, comigo a ser simpática para ele, só para ele. Não resultou. Mandei-lhe mensagens de corpo inteiro para ver se ele via no meu corpo o que não tinha visto em mim. Não resultou. Até lhe mandei mensagens só de texto, porque podia ser que ele fosse daqueles que têm o fetiche das letras. Não resultou. Tentei depois ser sedutora e comprei num leilão online um body estranhíssimo — mas a Paty disse-me que os homens gostam — e vermelho — isso eu já sabia que os homens gostam —, vesti-o por baixo de um fatinho transparente e fui ter com ele fazer-lhe olhinhos e boquinhas. Não resultou. Depois, tentei o recato e o embaraço, pensando em coisas que me fazem corar e desfazendo-me em risinhos ao pé dele. Não resultou. Pintei-me muito. Não resultou. Fui ter com ele com a cara que vejo ao espelho depois de acordar (bem, mais ou menos). Não resultou.
O Robinho não gosta de mim.
Mas eu não sou mulher para desistir assim, por dá cá aquela palha.
Ainda se o Robinho fosse homossexual... mas não é, que eu bem o vi com a serigaita da Amélia aos beijinhos e abracinhos e ela a derreter-se toda junto dele.
Grande puta!
Mas ela há-de ver. Eu não sou mulher para desistir assim, por dá cá aquela palha. Eu sei das coisas. Vejo filmes e novelas e falo com as minhas amigas, até mesmo em pessoa. Ela há-de ver.
A Amélia é minha amiga, pensa ela. Fizemos amizade há semanas, na sala virtual da Cosmo. Ela, com o corpo dela própria, vestia um modelo exclusivo de um estilista qualquer japonês, e eu, disfarçada de Sófi, também. Quer dizer: não o mesmo modelo, claro. Mas parecido. Ela achou engraçado, e veio ter comigo a dizer que nós devíamos tornar-nos amigas porque tínhamos muito em comum. Eu ri-me muito — quando quero, sei bem ser uma vaca hipócrita — e disse que também achava. Se lhe passasse pela cabeça que o que nós tínhamos em comum era eu ter andado a perguntar que tipo de porcaria vestia aquela rameira nas salas virtuais...
Mas pronto, ficámos amigas. Amigas com aspas, está bem de ver. Falámos de roupas, depois de modelos, depois de signos, depois de roupas outra vez, depois de actores giros e finalmente de homens. Tentei não mostrar demasiado interesse quando a conversa passou pelo Robinho, mas não havia perigo, porque foi só de raspão e ela estava distraída.
Nessa noite, saí da sala virtual triste. O meu quarto estava escuro como uma ameaça, e eu corri a acender todas as luzes. Não gosto do escuro. Faz-me pensar em bichos rastejantes e castanhos — vi um, uma vez, e ia morrendo de susto. E depois outra vez, de nojo.
Mas adiante: continuámos a encontrar-nos, sempre na sala da Cosmo, sempre vestidas de quase igual, como as melhores das amigas. Aos poucos, ela começou a contar-me coisas do Robinho, o que o Robinho fazia, o que o Robinho dizia, o que ela sentia quando estava com o Robinho e eu, tentando reprimir a raiva, tentava dirigir a conversa para o que me interessava mesmo: o que o Robinho gostava. Sem grande sucesso. Ou a Amélia não sabia lá muito bem o que é que agrada ao Robinho, ou tentava esconder o que sabia, até mesmo das amigas.
O que vale é que uma ou outra coisa lá ia caindo, quase por acaso.
Foi assim que fiquei a saber que o Robinho gostava do peito com uma certa forma. Parece que, para ele o peito ideal devia parecer-se com metade de um limão. E o meu, que mais parecia uma ervilha...
Pus-me logo a fazer tratamentos, claro. Há agora uns adesivos novos, os Genepor, que te mudam o corpo da maneira que quiseres. A caixa tem uma porção de palavras complicadas, substituição genética, e não sei quê, replicação de ARN, e não sei que mais — eu não percebo nada disso. Mas disseram-me que funcionava, e eu experimentei.
Funciona mesmo, sabiam? E só tive de esperar uma semana até poder ir ter com o Robinho com um vestido de alças e um decote gigantesco para que ele visse tudo.
E quando eu digo tudo, é tudo.
Não resultou.
Mas não desisti. Já vos disse que não desisto assim por dá cá aquela palha, não já?
Voltei para a sala virtual da Cosmo, mas a Amélia não estava e andei por ali horas, meio perdida, a trocar olás e sorrisos com perfeitas desconhecidas. Levei todo esse tempo a perceber que naquele dia não iria sequer conseguir roubar mais algum segredo à Amélia, e quando finalmente o percebi, quase fugi dali para fora, de volta ao meu quarto.
Chorei muito nessa noite.
Com as luzes bem acesas.
Passaram-se vários dias, sempre na mesma. Entretanto, o efeito do Genepor ia passando e o meu peito voltava devagarinho ao seu triste estado normal. Não estou a dizer isto por nada de especial, não pensem que se nota alguma coisa na sala virtual, que eu não tenho instalada aquela parvoíce do espelho virtual. Prefiro ser lá dentro tão voluptuosa quanto quiser. Eu, e a maior parte das pessoas que eu conheço. Até já ouvi histórias bem picantes com raparigas que se fazem passar por homens. Umas esgrouviadas.
Mas às vezes, misturo um bocadinho a vida virtual com a real, e nem sempre consigo agir de um dos lados da fronteira conforme a pessoa que sou desse lado da fronteira. Olhem os seios, por exemplo: na sala virtual, no meu disfarce de Sófi, sou bem fornecida, e já tenho dado por mim a exibir as minhas tristezas na vida real, como se tivesse alguma coisa para exibir. E vice-versa, claro.
É triste ser assim, despassarada.
Mas estou a perder-me. Voltemos ao que interessa.
Passaram-se vários dias, sempre na mesma: eu ia à sala da Cosmo à procura da Amélia e nada de Amélia. Deambulava por lá durante horas, quase sempre sozinha, e depois voltava para a tristeza do meu quarto e para a minha actividade preferida nele: ensopar lencinhos de absorvan. E, durante todo esse tempo, o pensamento que não me largava os sacos lacrimais era só um:
O Robinho não gosta de mim.
Já começava a achar que iria ter de arranjar outra forma de retomar contacto com a Amélia, ou até outra maneira totalmente diferente de saber coisas do Robinho, quando, enfim, dei de caras com a minha rival no sítio de sempre.
Fiz-lhe uma festa. E nem precisei de fingir muito. Logo de seguida, como é evidente, crivei-a de perguntas, intercalando sorrisinhos com beicinho de amuada.
— Então por onde andaste? Não soubeste avisar? Passou-se alguma coisa? Nunca mais ninguém te viu, zangaste-te? E o Robinho?
Sim, perguntei-lhe mesmo pelo Robinho, assim, sem mais nem menos, de chofre.
O que vale é que ela estava distraída, como é hábito.
— Oh, não me digas nada! — respondeu-me — Andei por fora precisamente por causa do Robinho. Então não é que uma vaca qualquer andou a atirar-se ao meu homem? Tive de fazer horas extraordinárias, para reparar os estragos. Se apanho aquela barata, desfaço-a!
Acho que soltei um soluçozinho ou coisa do género.
Pelos vistos tinha quase resultado. Quase. Se não tivesse sido a Amélia...
Grande puta!
— É mesmo assim — consegui dizer. — Se não temos cuidado com os nossos homens, é um ar que se lhes deu. O que não falta por aí é cacatuas prontas a ferrar-lhes o bico.
Claro que a cacatua era ela. E, oh, que prazer foi vê-la a concordar comigo!
Mas com a Amélia as irritações não duravam muito e não demorou até que a nossa conversa regressasse ao normal: roupa, modelos, signos, roupa outra vez, actores giros, homens e, de vez em quando, e de raspão, Robinho. E daí não saímos durante vários dias, eu sempre à cata de alguma informação útil e ela, sem dar por nada, a falar de porcarias.
Oh, claro que eu gosto das minhas conversas sobre trapos, modelos, signos, homens e actores. Mas o que eu queria era saber do Robinho!
Quem espera sempre alcança, dizia-se antigamente, e finalmente lá caiu qualquer coisa de útil nos meus ouvidos sequiosos.
Pelos vistos, o meu Robinho pelava-se por olhos verdes.
E os meus, claro, tinham de ser castanhos.
Comprei mais um pacote de Genepor para os seios e um frasquinho de Oculindo, um produto novo, em aerossol, que se borrifa para dentro dos olhos e lhes faz um tratamento cosmético completo, incluindo uma mudança da cor da íris tão perfeita que é como se tivéssemos nascido com a cor nova. Quando o crescimento do peito se completou, pus outro vestido, ainda mais transparente e decotado que o anterior, obtive magicamente os meus olhos verdes, fiz tudo o que pude para realçá-los à base de maquilhagem, e parti para a caça.
Estava linda. Mesmo linda.
Mas não resultou.
O Robinho não gosta de mim.
Em compensação, passei uma noite esplendorosa com um amigo dele, o Arnaldo. Não tanto pelo sexo, que nisso ele não era grande coisa (ou então era eu que não estava para aí virada, sei lá), mas mais pelo que o Arnaldo me contou do Robinho.
Falámos dele a noite toda.
E nem precisei de puxar a conversa: o Arnaldo parecia ainda mais fascinado pelo meu homem do que eu. E sabia muitas mais coisas dele do que eu, muitas mais.
O Arnaldinho revelou-se uma mina.
Fiquei, portanto, a saber que o Robinho tem um fraco por raparigas de 16, 17 anos, e que gosta delas com pernas longas, estreitas e flexíveis — pernas de gazela, disse o Arnaldo —, que simplesmente adora uma tatuagem atrevida num sítio íntimo, que perde a cabeça por mulheres de voz aguda, desde que não seja estridente, e que gosta de cabelos com reflexos exóticos. Ah, e um cheiro qualquer que o Arnaldo não me conseguiu descrever. Parece que o Robinho fala muito do cheiro das suas mulheres, mas diz que não tem palavras para o descrever. O resto foi óptimo, mas esta última parte deixou-me um bocado frustrada. Ter sido só isto que consegui saber...
Bem, para ser franca não foi: descobri também que ele tem uma tara secreta por buços.
Esta informação fez esmorecer um pouco a minha paixão pelo Robinho. Poderia eu estar mesmo apaixonada por um homem que gosta de... buços? De mulheres de bigode?
Andei um dia inteiro a analisar os meus verdadeiros sentimentos, e tanto os analisei que ao fim da tarde estava pronta, pensava eu, a esquecer todo aquele assunto, esquecer o próprio Robinho, e devolver à minha vida um pouco de serenidade. Mas depois cruzei-me com ele na rua e fiquei especada, a olhar.
A olhar, sim, dirigindo olhares de enlevo ao Robinho e lançando-os furibundos à rameira da Amélia, que se esfregava nele como se fosse uma toalha.
Se os olhos pudessem matar, juro que estaria agora a fugir da polícia.
Aquela puta, puta, puta, puta!...
O pior de tudo foi que o Robinho nem reparou em mim. Pudera: não tenho pernas longas, estreitas nem flexíveis, nem tatuagens, nem nada de exótico no meu cabelo louro, nem buço, nem voz aguda e muito menos 16 anos. Assim, não admira que o Robinho não goste de mim.
Fui logo para casa, ai, tão triste, espalhando pelas ruas um rasto de lágrimas.
Não dormi nessa noite. Mas quando a manhã começou a espreitar entre os prédios da cidade, encontrou-me resoluta, de decisão recém-tomada. É que eu não desisto por dá cá aquela palha, nem mesmo quando depois de uma palha vem outra, e outra, e outra, e um fardo inteiro. Eu não desisto, ponto final.
Liguei-me à minha biutichópe e encomendei uma remessa inteira de pacotes de Genepor, de vários tipos, um frasco novo de Oculindo, uma bisnaga de Courobelo, que é uma pomada que se espalha no couro cabeludo e que transforma, sozinha, a cor dos cabelos, uniformemente, da raiz até às pontas. Mandei vir também dois emplastros de Genetatu, que são assim uns adesivos que vêm com um produto qualquer (DNA? Se calhar...) arranjado aos desenhos, e que, quando se cola na pele, cria uma tatuagem, muito depressa e muito perfeita. Encomendei um coração, para pôr na omoplata, e um escorpião, para pôr... bem... algures. E arranjei também uma carteira de Heliogeias, grageias que se tomam para tornar a voz mais aguda, e um frasco de Pilosan, que estimula o crescimento dos pêlos corporais. E, para rematar, a encomenda ficou completa com um tratamento completo de Filosostone. Custou-me os olhos da cara, o Filosostone mas, se cumprir o que a propaganda anuncia, irá valer bem a pena.
Rejuvenescimento, cá vou eu!...
Assim que as coisas chegaram, fechei-me em casa e tratei de começar imediatamente a aplicar os produtos. Levei quase um mês em alterações, suportei dores e tudo, apanhei uma irritação de pele no sítio onde coloquei um dos emplastros de Genetatu (só depois vi que já estava fora do prazo) que precisou de anti-histamínicos para passar — mas a tatuagem ficou lá, isso é que importa — enfim, passei um mau bocado.
Mas quando tudo aquilo acabou, não reconheci a rapariga que olhava para mim, do espelho, com um sorriso de orelha a orelha a fazer-lhe covinhas nas bochechas.
Era um bocadinho esquisito, mas como já estava habituada a acontecer-me o mesmo nas salas virtuais, não estranhei. Na verdade, já estava à espera.
Do que não estava à espera é de não ter nenhum conjunto que servisse no meu corpo novo. Nada do que tinha me ficava bem: as minhas velhas roupas ficavam-me todas larguíssimas e curtas, além de não jogarem mesmo nada com as novas cores dos meus olhos e cabelo.
Até a roupa interior parecia disforme. Só conseguia vestir o body vermelho, que era ajustável, à antiga, com colchetes e velcro, e um fato de tecido inteligente, o meu fato mais caro, que se ajustava sozinho, à moderna.
Ainda por cima, os tratamentos tinham-me deixado as finanças um bocado em baixo, e portanto não ia poder comprar nada de extravagante. Mas tinha de comprar qualquer coisa! E como não confiava no meu olho para as minhas novas medidas, não podia encomendar nada online, tinha de ir à loja, em pessoa, provar os trapos novos.
Olhem, perdi a cabeça e esgotei o saldo. Fiquei sem saber como iria viver o resto do mês.
Mas foi por uma boa causa. O Robinho vale todos os sacrifícios.
No dia seguinte, vesti-me como a adolescente sofisticada que passara a ser, pus o spray nos olhos e pintei-os à volta, exagerando menos na dose do que da outra vez, espetei um travessão no meu novo cabelo ruivo com uma madeixa arroxeada, passei com a escova dos dentes pelo meu buço recém-nascido, mirei-me e remirei-me, achei-me fabulosa e fui ter com o Robinho.
Não resultou. Oh, não, não resultou!
O Robinho não gosta de mim.
Voltei para o meu quarto e ensopei um carregamento inteiro de absorvan.
O Robinho não gosta de mim.
Pior: tinha esgotado todas as possibilidades. Sim, não sou rapariga para desistir, nem que seja soterrada por um carregamento de palha. Mas se chego a um ponto em que não vejo caminho alternativo nenhum, tenho mesmo que o fazer, por mais que não queira.
Desistir do Robinho?
Oh, tristeza sem fim!
Mas que fazer, se o Robinho não gosta de mim?
E, pior que tudo, depois do Robinho foi o Cristiano, o Alberto, o Xiquinho e o Mané.
Nenhum deles gosta de mim! Nenhum!
Estou reduzida a escrever bilhetes perfumados, cheios de corações e florinhas, que já não tenho coragem para mandar a ninguém, e a passear-me pelas salas virtuais com disfarces de adulta.
É que o pior de todos os piores, pior ainda de nenhum dos meus homens gostar de mim, é que exagerei nos tratamentos que fiz na altura do caso do Robinho.
Eu não sabia que o Filosostone não se podia misturar com o Genetatu. Eu não sabia! Não sabia! Nem sequer fazia ideia alguma de que existia uma coisa chamada "potenciação de efeitos cruzados". Nunca me passou pela cabeça que existisse a possibilidade de efeitos irreversíveis. De efeitos permanentes. Nunca.
Tudo isto se passou há dez anos, mas para mim é como se tivesse sido ontem. Sim, porque continuo igual. As mesmas pernas de gazela, os mesmos seios de limão, as mesmas tatuagens, o mesmo buço, os mesmos cabelos com madeixas que agora são de várias cores.
Só os olhos voltaram ao normal. De resto...
Sou uma rapariga triste, presa numa eterna adolescência.

1 comentário:

  1. conheço gente assim... que não cresce, que não floresce... que só sofre.

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