domingo, 19 de julho de 2009

Eu e a Lua

Já sou suficientemente velho para ter assistido à alunagem da Apollo na televisão, mas sou novo demais para me lembrar dela. Sei que a vi porque os meus pais mo disseram, e porque fui encontrar, anos mais tarde, um desenho infantilíssimo que só podia ser a minha tentativa de representar o módulo lunar, com o seu aspeto anguloso, com as suas pernas rematadas por apoios circulares (embora no desenho fossem só três, em vez de quatro), com as suas proporções razoavelmente corretas. Mas de nada me lembro, ou pelo menos sou incapaz de decidir se as imagens que tenho na memória têm alguma coisa a ver com os acontecimentos em direto, se são apenas reminiscências da miríade de fotografias e vídeos desfocados que vi mais tarde.

Hoje, que o planeta comemora os 40 anos da Apollo com um aparato mediático que contrasta com o quase silêncio de há 10 anos, dou por mim algo incomodado. Este post é uma tentativa de perceber porquê.

Em primeiro lugar há o óbvio: todas as histerias mediáticas me incomodam. E embora esta seja bem mais contida e o acontecimento bem mais merecedor do que a vida do Cristiano Ronaldo ou o desaparecimento da pequena Maddie, vejo nela algumas das mesmas características. Não me verão a desabafar com um "Arre! Já chega!" a propósito da Apollo, mas sinto o mesmo incómodo que me levou a fazê-lo relativamente a outros excessos mediáticos, ainda que numa concentração mais diluída.

Mas não é só isso.

A verdade é que nunca fui grande fã do programa Apollo. Sim, o Homem pisou outro corpo celeste, caminhou por ele, deixou lá aparelhos científicos que continuam ainda hoje a fornecer dados, recolheu amostras e trouxe-as para a Terra para serem aqui estudadas. Houve ciência importante a nascer com e do programa Apollo, e houve também desenvolvimentos tecnológicos que nos beneficiaram a todos. Mas a verdade é que nunca foi esse o objetivo primordial. O grande objetivo era, desde o início, militar e de propaganda. O programa Apollo foi filho da Guerra Fria e do facto dos soviéticos terem tomado a dianteira da "conquista" do espaço (até aqui a terminologia é bélica) com o lançamento do Sputnik e a colocação em órbita dos primeiros cosmonautas. O programa Apollo nasceu porque os americanos precisavam de algo espetacular que pudessem brandir, dizendo: OK, vocês fizeram isso, nós fizemos isto, que é melhor. E mais: pôr um pé na Lua era um primeiro passo necessário para eventuais reivindicações territoriais. Nunca chegaram a concretizar-se (pelo menos por enquanto — se a indústria espacial privada se desenvolver o suficiente para conseguir chegar à Lua temos em mãos um problema sério), mas podem ter a certeza de que não deixaram de ser ponderadas por muita gente. Não é certamente por acaso que o Tratado do Espaço Exterior, que proíbe reivindicações territoriais no espaço, foi assinado em 1967, meros dois anos antes da primeira alunagem.

Isso, no entanto, ainda é o menos. O realmente mau é que o programa Apollo é precisamente o contrário do que deve ser feito para desenvolver uma presença sustentada fora da Terra, e isso é o que realmente me interessa quando está em causa a presença do Homem em órbita ou noutros corpos celestes. Como o objetivo era de curto prazo, nunca se pensou a longo prazo. É verdade que se aprendeu a levar gente lá e a trazê-la de volta, mas nada foi feito para pensar em termos de futuras bases, métodos industriais que pudessem funcionar in loco, maneiras de produzir provisões que reduzissem a dependência relativamente ao planeta-mãe, etc. Foi-se apenas lá. Na verdade, assim que a primeira alunagem aconteceu, a NASA começou a reduzir pessoal. O "salto de gigante para a Humanidade" apregoado por Neil Armstrong (e não tenho dúvidas de que ele acreditava realmente no que estava a dizer) não passou dum saltinho. Ter ido à Lua em 1969 é um pouco como se os portugueses tivessem iniciado os seus séculos de exploração e expansão visitando a Madeira apenas para dizer infantilmente aos espanhóis "encontrámos umas ilhas e vocês não, toma-toma!" Cumprido o objetivo propagandístico, resolvidas as eventuais pretensões territoriais com o Tratado do Espaço Exterior, solucionados os problemas políticos, a Lua foi basicamente abandonada. O programa Apollo, que começou em triunfo, terminou quase em fiasco.

Quase. Porque houve algo que o programa Apollo nos deu, algo que não estava nos planos dos políticos e militares que o planearam, algo que na realidade está em completa oposição à filosofia que presidiu a todo o programa, algo que pode ser resumido nesta imagem:


O nascimento da Terra sobre o horizonte lunar, a visão do lar de todos nós como uma bola azulada a erguer-se sobre um horizonte desolado juncado de crateras, foi uma das mais poderosas sementes dos movimentos pela paz e dos movimentos ecologistas que, embora frequentemente com origens anteriores, começaram a conhecer um aumento rápido na sua adesão a partir dos finais dos anos 60 e nos anos 70. A consciencialização de que todos vivemos no mesmo planeta, e de que este não passa duma esfera que, no grande esquema das coisas, é bastante insignificante, entrou em muitas cabeças a partir destas imagens das naves Apollo. E é este o mais importante legado da alunagem de há 40 anos que comemoramos agora. A alunagem em si mesma, aquilo que ela significou para a exploração do nosso satélite, foi, a longo prazo, mais desapontamento do que triunfo. Mas a mudança não planeada que ajudou a operar no modo como vemos o lugar da nossa espécie no Universo pode conter a chave do nosso futuro.

E é por isso que me sinto ambivalente relativamente ao programa Apollo e mais ainda às atuais comemorações. Não vejo este aspeto a ser referido com a frequência que acho desejável; vejo principalmente triunfalismo, palavras de circunstância sobre a proeza, um fechar de olhos voluntário relativamente às zonas escuras das circunstâncias que a geraram. E isso, essa mitificação do passado, é o primeiro passo para as amnésias voluntárias que tanto mal costumam causar.

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