sábado, 4 de julho de 2009

A quem interessar possa

Gosto do twitter. É, ou pode ser se bem utilizada, uma ferramenta poderosa para fazer uma série de coisas, mas há algumas para as quais é manifestamente desadequado. E dificilmente poderia ser mais desadequado para discussões complexas.

Hoje meti-me numa. Partiu duma consideração que me parece perfeitamente óbvia: se um editor se queixa de não se editar o tipo de literatura xis, o que tem a fazer é ao menos tentar editá-la. Decentemente, se for capaz.

Esta constatação óbvia gerou uma série de reacções por parte de gente ligada ao editor em causa, levantando uma porção de lebres que serviram basicamente para desviar as atenções. Não podendo atacar a consideração, precisamente por ser evidente, atacou-se uma porção de outras coisas, incluindo a pessoa do constatador. Enfim. É o triste hábito.

Mas como as lebres foram muitas, e continuaram a insistir nelas, aqui vai o que eu penso a seu respeito.

Para mim, uma editora profissional é uma editora cujos editores são profissionais. Ou seja, é uma editora cujos editores obtêm da editora rendimento suficiente para se sustentarem. Uma editora cujos editores, mesmo que façam trabalhos por fora, não precisem de os fazer.

Pelo menos os editores. Já não falo de empregados e de outros profissionais que lhes prestem serviços.

Editoras que não cumpram este requisito não são editoras profissionais. Podem ser semi-profissionais ou amadoras, mas profissionais com toda a certeza que não são.

Há diferenças significativas entre uma editora que é profissional e outra que não o é, e a principal dessas diferenças é que uma editora profissional é obrigada, por uma questão de sobrevivência económica, a gerir muito bem o seu catálogo por forma a gerar um rendimento suficiente para continuar a pôr o pão na mesa dos seus trabalhadores e colaboradores.

Este objectivo pode ser atingido de várias formas. Pode apostar-se em grandes sucessos de vendas, independentemente da respectiva qualidade. Um único grande sucesso de vendas pode manter uma editora em funcionamento durante meses a fio, mesmo que nada faça a não ser preparar o próximo (e gerir as chatices com distribuidores, gráficas, e todas as outras coisas que se desenrolam nos bastidores). Outra forma é apostar em livros que lucrem apenas o suficiente para manter a máquina em funcionamento, o que implica um ritmo de edição acelerado, pois se cada livro lucrar pouco é preciso mantê-los a sair com regularidade para manter os profissionais alimentados, vestidos e, quando a coisa corre bem, com uma conta bancária não completamente depauperada.

É assim que funcionam as nossas editoras profissionais, e é por isso que tanta gente se queixa das prateleiras das livrarias estarem cheias de lixo. Eu, Carolinas, livros pretensamente escritos por vedetas de TV ou com presença assídua na TV e coisas que tais. É lixo, mas é lixo lucrativo, e capaz de pôr o pão na mesa dos profissionais. Estes editam o lixo precisamente porque são profissionais, e muitas vezes profissionais competentes. Goste-se ou não, a realidade é esta.

Uma editora que não é profissional funciona de forma bem diferente. Tanto as semi-profissionais como as amadoras aspiram no máximo a obter um rendimento modesto, que é complementado pelas outras actividades dos respectivos editores. Algumas podem mesmo dar-se ao luxo de perder sistematicamente dinheiro, desde que as outras actividades do(s) editor(es) lhe(s) dêem essa liberdade.

Como consequência, estas editoras são bem mais livres no que toca ao que editam e ao modo como editam, embora o reverso da medalha seja estarem geralmente em franca desvantagem no momento de negociar direitos. Mas tirando este detalhe, têm muito mais possibilidade de fazer uma edição de gosto, de prazer, do que as profissionais. E têm muito mais liberdade para editarem precisamente o quê e como lhes apetecer. Liberdade essa que é sagrada. Cada um que edite o que muito bem entender e como muito bem entender. Agora que não venha é depois, armado em Calimero, de ovo na cabeça, choramingar que não se edita aquilo que ele próprio não edita.

Entretanto, enquanto eu escrevia isto, o Seixas, no seu jeito troca-tintas e insultuoso do costume, deu um ar de sua falta de graça. Já que o fez, e já que o fez da maneira como fez, além de revelar que o tal editor que calimera porque não se edita o que ele não edita é precisamente o Seixas, acrescento o seguinte:

A edição de FC em Portugal tem sido, toda ela, baseada numa táctica simples: atiram-se livros cá para fora, geralmente muito mal traduzidos, não raro muitíssimo mal editados (com um texto que só com lupa se consegue ler, ou com páginas que começam a saltar assim que se abre o livro, etc.), sem qualquer tipo de promoção e reza-se para que o povo goste. A FC que se tem editado, quase exclusivamente estrangeira, é de dois tipos: a barata (autores obscuros e fraquinhos ou obras obscuras de bons autores) e a que o editor acha aposta segura (autores que já antes se editaram por cá, e com sucesso — motivo que leva a termos montes de material editado dum par de mãos-cheias de autores já bem entrados nos anos, e nada da generalidade dos mais novos.

(Um parêntesis para dizer que no que toca à ausência de divulgação, existe uma excepção. O romance Ar, de Geoff Ryman, que a Gailivro promoveu intensamente, com uma campanha de ofertas que provavelmente acabou por ser contraproducente quando chegou a hora de tentar vendê-lo — motivo pelo qual eu não aproveitei a oferta e preferi comprá-lo... mas suspeito de ter sido um entre poucos.)

As colecções de FC mais bem sucedidas e longevas que tivemos em Portugal seguiram um destes caminhos, ou ambos. A única excepção foi a colecção da Caminho, que sobreviveu durante década e meia com uma aposta na diversificação na origem geográfica e cultural dos autores, fugindo ao sufoco de autores anglo-saxónicos que sempre dominou as outras colecções (a Argonauta teve autores franceses, mas isso acabou nos anos 60) e em autores lusófonos, que têm a grande vantagem de não custarem direitos astronómicos nem precisarem de tradutores a que há que pagar, mesmo que mal.

Além disso, sempre reinou a incompetência. Algumas das pessoas que julgam que sabem alguma coisa de FC tentaram seguir parcialmente por outros caminhos, sempre com resultados desastrosos, porque nunca perderam cinco minutos que fosse a ponderar se aquilo seria, ou não, adequado ao público português. Nunca lhes entrou na cabeça que públicos leitores diferentes tomam opções diferentes de leitura, e tentaram impingir aquilo que achavam o supra-sumo da modernidade ou dos clássicos, importando padrões alheios que, como deveria ser evidente para qualquer um, não funcionam necessariamente por cá, e saltando apressadamente para a conclusão de que se aquilo que eles acham que devia vender não vende só pode ser porque não existe público para a FC.

Alguns exemplos foram a colecção Limites, da Clássica (que nem sequer foi distribuída para o país todo) ou a Contacto, da Gradiva, cujo único verdadeiro êxito foi um livro publicado à revelia do organizador da colecção. Esta última, que de facto tem livros muito bons e de autores suficientemente conhecidos do público para poder ter sido um êxito, falhou na parte física da edição e provavelmente no timing: numa época em que o público de FC estava acostumado às edições baratas dos livros de bolso, tentar impôr uma colecção de livros caríssimos de capa dura só podia ser suicídio. Como veio a ser. Se fosse hoje, a história teria provavelmente sido outra.

Culpa do público ignaro? Ou pura e simples incompetência? Eu voto, de caras, na segunda hipótese.

Para mim, é bastante evidente que existe um vasto público potencial para a FC em Portugal. Prova-o a quantidade de gente que consome ocasional ou regularmente ficção científica, ainda que muitos o façam através de outros media que não os livros e/ou em inglês, porque a imagem que o livro de FC em português tem é de ser pessimamente traduzido e caro. Muitas vezes merecida, há que admiti-lo.

De modo que pessoas que sejam sérias na tentativa de transformar esse público potencial em público real, e que tenham algum grau de competência, têm de partir desta base, e não de outra qualquer, sabendo à partida que o processo é necessariamente demorado. Têm de adaptar as suas estratégias à situação existente, fazendo as apostas correctas. A todos os níveis. Não me surpreende que muitos tenham medo sequer de tentar: não é um caminho fácil. É algo que só poderá ser feito por uma editora profissional respaldada por um grande sucesso, ou vários, ou por uma editora não-profissional com gente inteligente ao leme, gente com tempo para pensar bem na estratégia a seguir. Porque é preciso ter uma estretégia. Não basta querer e desistir à primeira dificuldade, e muito menos cair na choraminguice antes mesmo de se tentar.

E também é preciso ter estômago para aguentar os grãos ou verdadeiros calhaus que põe à primeira oportunidade na engrenagem quem diz ter interesse na evolução do género em Portugal mas na verdade faz todos os possíveis para destruir qualquer hipótese da FC singrar por cá, decretando a "ausência" de um mercado que ninguém procurou como deve ser criar, procurando desmoralizar quem produz, esforçando-se por diminuir as publicações que, apesar de tudo, existem, ou até, na verdade, toda e qualquer iniciativa que outros levem a cabo, etc., etc., etc. Os verdadeiros assassinos da FC em Portugal são estes, é esta gente que seria de toda a conveniência abrir a câmara de vácuo com eles lá dentro e deitar borda fora.

E se fosse só o Seixas, estaríamos nós bem.

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