Se caíste aqui sem passar pela casa de partida, aconselho a dar lá um salto primeiro.
Antes de mais nada, se calhar convém pensarmos um pouco sobre alguns termos para sabermos bem de que estamos a falar. Começando pelo termo “editora”, que se presta a numerosos equívocos, até por a realidade a que diz respeito estar em mutação.
A verdade é que as editoras que conhecemos são, basicamente, uma realidade do século XX. Nasceram no século anterior, de uma aliança entre as livrarias e as tipografias destinada a dar resposta à industrialização que a crescente classe letrada procurava nos produtos ligados à palavra, mas foi só no século XX, quando a alfabetização ganhou massa crítica, que realmente se geraram as condições para o florescimento da atividade editorial. São, portanto, empresas intimamente ligadas à industrialização, e uma das causas das suas dificuldades atuais reside precisamente aí. É que a industrialização tem como base a produção em série de grande volume de produtos iguais. É isso que embaratece o produto final por gerar economias de escala. Mas para que tal seja viável é necessário que haja procura massificada de produtos iguais. Produção em série necessita de procura em série. Ora, se hoje, como muitos defendem, estamos em plena transição para uma época pós-industrial, em que a procura se pulveriza e a unicidade recupera a primazia, a organização tradicional das editoras fica logo aí em xeque.
Mas esta é a parte puramente económica da coisa. Tem influência, por vezes decisiva, mas está muito longe de constituir alguma espécie de todo.
É que as editoras também serviram durante muito tempo como uma espécie de provedores dos leitores. Sim, é verdade que respondiam à procura. Mas, como a literatura é, sempre foi, uma atividade de prestígio, elas também formatavam a procura. Até os aspetos económicos ganharem a primazia que têm hoje (processo que veio decorrendo paulatinamente ao longo de décadas, por mais que pareça ter acontecido de repente há uns anos quando as editoras começaram a ser compradas quase por atacado por grupos económicos poderosos), autor que se visse publicado podia gabar-se de um certo relevo na cultura de um país. Autor que se visse publicado com consistência mais um pouco.
O que nunca obstou à publicação de lixo com fartura, claro. Porque sempre houve editores mais interessados na parte comercial da atividade do que na cultural, porque sempre houve editores com pouca ou nenhuma perspicácia para distinguir o que pode ter relevo cultural do que não o terá nunca, porque sempre houve quem se autoeditasse sem ter conhecimentos ou qualidade suficiente para tal, porque sempre houve amigos, conveniências, mau gosto, cunhas, jeitinhos, censura, gente politicamente influente a mexer cordelinhos, em especial nos tempos da ditadura, em que a resposta dada aos cordelinhos mexidos por gente politicamente influente podia acarretar perigos vários, enfim, um nunca acabar de impurezas a macular os róseos Olimpos que por vezes se gosta de apresentar, em especial quando se fala do passado.
As coisas nunca foram rosadas. Sempre houve sordidez no meio, golpes baixos, interesses em compita, o diabo a quatro.
E no entanto, as editoras aí estão. Passaram por tudo isso, umas morreram, outras transformaram-se, outras nasceram cheias de genica e ideias, e aí estão.
Só que há um problema: nem todas as empresas que se intitulam editoras merecem que as chamemos assim.
Simplificando bastante para que melhor se entenda: uma editora é uma empresa que é cliente dos produtores de conteúdos e que tem como clientes os leitores, e isto não muda quando a transição pós-industrial acontece. Para que se possa falar com propriedade de editoras, as empresas têm de funcionar assim. Compram os conteúdos aos produtores — escritores, designers, paginadores, tradutores, etc. —, pagando-lhes, e juntam tudo para criar um produto novo, que depois comercializam.
Só que não é assim que funcionam bastantes das autoproclamadas “editoras” que existem por aí, e tem sido esse o principal foco de polémica em tempos mais recentes. Há empresas, e em bom número, que por mais que se disfarcem de editoras não o são, pois têm como clientes não só os leitores, ou até não principalmente os leitores, mas os próprios produtores de conteúdos.
E há uma monumental confusão à volta delas. Da qual falarei amanhã.
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