sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Da edição presente e futura: Fraude?

(Este texto vem na sequência de outros três: este, este e mais este.)

Olhemos um pouco mais de perto para o que faz uma editora a sério. Embora nem todas funcionem da mesma forma, até porque algumas são mais especializadas e outras mais generalistas e nem todas as secções do mercado livreiro têm um funcionamento exatamente igual, regra geral as editoras a sério fazem apostas em livros de retorno certo, ou quase, a fim de cobrir os prováveis (ou certos) prejuízos de apostas mais arriscadas. É daí que vem a cultura do best-seller que invadiu livrarias e supermercados. É também daí que vem a propensão para a série, e frequentemente para a série longa, que infetou boa parte da literatura mais comercial. O best-seller, em especial aquele que vende bem anos a fio, ou a série, na qual um livro se segue a outro mantendo desejavelmente um público fiel que quer saber onde a história vai desaguar, são as apólices de seguro da editora, aquilo que lhe permite manter alguma estabilidade de caixa e dinheiro para pagar a funcionários e colaboradores e para investir em compras de direitos, contratos nacionais, campanhas de marketing (que por sua vez alimentam os best-sellers), etc.

Em países como Portugal, a grande maioria dos best-sellers ou das séries é importada. São livros já testados em outros mercados que as editoras lutam por garantir para si, na esperança de resultarem também no nosso. Nem sempre resultam, e é aqui que reside o risco que este tipo de edição tem. Pode ser pequeno, o risco, mas também pode ser grande, quando a editora investe pesadamente num livro ou numa série que depois não dá o retorno previsto. Uma forma de diminuir ainda mais o risco é apostar em livros ou séries de livros associados a filmes ou séries de televisão de grande sucesso, mais raramente a outros media como os jogos de computador. Reduzir, apenas; na edição a sério não existe ausência de risco.

Outros best-sellers são nacionais: escritores (e “escritores”) com público praticamente garantido à partida, seja pela sua relevância cultural, seja porque são caras conhecidas de outros media, e também aqui o risco existe, se bem que ao editar um livro do Saramago, do Lobo Antunes ou do José Rodrigues dos Santos a editora tenha à partida alguma garantia de vendas significativas.

Chocados com a mistura entre Saramago, Lobo Antunes e JRS? Não fiquem, que na verdade a qualidade pouca influência tem em tudo isto. O best-seller tanto pode ser um livro de um prémio Nobel como pode ser uma biografia do Cristiano Ronaldo ou porno-chanchadas em tons de cinza, passando por uma série de pontos intermédios. Não importa o que seja, basta que se venda bem para que o efeito que tem sobre o funcionamento da editora seja praticamente igual.

(Só não é exatamente igual porque a cada edição está associada uma certa quantidade de prestígio ou desprestígio, embora este fator esteja em acelerada erosão: editoras que há alguns anos se recusariam a publicar certas coisas por temerem o desprestígio a elas associado, hoje publicam-nas alegremente simplesmente porque lhes dá lucros que não obtêm de outra forma.)

Se os best-sellers lhes permitem algum desafogo financeiro, as editoras mais apegadas ao seu velho papel de provedoras do gosto dedicam-se a publicar livros que consideram importantes, relevantes ou de grande qualidade, pese embora a elevada probabilidade de resultarem em vendas fracas e prejuízos. Outras, as que ainda se preocupam com o prestígio, dedicam-se, precisamente, à edição de prestígio: obras premiadas, escritores malditos ou obscuros, etc. Outras estão-se nas tintas e publicam mais do mesmo, sempre mais do mesmo, preocupadas apenas com a obsessão puramente capitalista de ampliar os resultados de tesouraria e arranjar dividendos para entregar aos acionistas.

Mas isto só acontece se e enquanto a editora tem algum desafogo financeiro. Se este desaparece, por exemplo porque o país é entregue a um bando de loucos perigosos que lhe destrói a economia em nome de amanhãs que cantam que só eles conseguem vislumbrar, a primeira coisa a ser sacrificada são as edições deficitárias. E lá se vão os livros que em princípio vendem pouco, lá se vão os autores de prestígio, lá se vai a qualidade como fator razoavelmente decisivo na hora de escolher que livros publicar. Ficam só os best-sellers, que já não o são tanto como isso (passam a ser só sellers). Ficam só as edições que trazem consigo o mínimo risco possível, a máxima garantia de retorno.

O risco, contudo, nunca, nunca desaparece. É isso que todos estes livros e todas estas editoras, apesar de toda a sua variedade, têm em comum: cada edição é um risco, cada edição é um investimento, cada edição é, pelo menos em parte, um salto no escuro.

Depois, as editoras a sério têm de competir com empresas fornecedoras de serviços editoriais disfarçadas de editoras. Estas últimas não correm riscos ou, por outra, o único risco que correm é faltarem-lhes escritores prontos a pagar para verem a sua produção em livro (e estes nunca parecem faltar). Podem vender um total acumulado de zero, que continuam calmamente a funcionar como se nada fosse e a lançar para o mercado obra atrás de obra, quantas mais melhor, porque cada obra “editada” corresponde a xis que entra nas contas bancárias da empresa.

Tenho uma historiazinha pessoal que mostra o tipo de atitude que se pode esperar quando a edição está paga aconteça o que acontecer às vendas. O meu primeiro livro, fruto de um prémio num concurso literário, foi publicado numa edição paga pela entidade que promoveu o prémio. Por conseguinte, a editora nunca se preocupou em tentar vendê-lo, tratou a edição com total indiferença. Chegou até ao ponto do ridículo quando uma conhecida minha se dirigiu à sede da editora — segundo julgo saber, tem livraria própria — para comprar um exemplar, e o funcionário lhe disse que esse livro não existia. Que não existia. Foi preciso ela insistir, dizer até que conhece o autor, para lá lhe arranjarem o exemplarzinho. O qual, milagrosamente, passou de repente a existir.

E é basicamente isto que estas editoras fazem. Põem os livros cá fora, mais ou menos a trouxe-mouxe e com pouco interesse em vendê-los porque pura e simplesmente não precisam: já têm o lucro garantido com a própria edição, podem partir para outra. O autor, que pagou, que trate também das vendas. Se quiser recuperar algum do seu dinheiro.

Aqui reside a primeira parte da fraude. Porque não são raros os autores que vão ao engano, julgando que os seus livros serão distribuídos como os de uma editora a sério, julgando vir a poder encontrá-los nas livrarias, julgando até, por vezes, que à edição vem associada alguma espécie de marketing. Por vezes, isso é-lhes explicitamente prometido, outras vezes é apenas sugerido, outras nem sugerir é preciso; basta deixar que a ingenuidade e a inexperiência da grande maioria das pessoas que embarca na fraude faça o que tem a fazer.

Depois há a parte em que os próprios autores são cúmplices, quando pagam a edição e depois se apresentam como autores de um livro publicado pela editora Tal. Como se a editora Tal tivesse analisado o manuscrito, o tivesse considerado digno de publicação e o tivesse publicado depois de passar por todo o processo por que passam os livros publicados por editoras a sério, quando na verdade o que a “editora” Tal faz é dizer dá cá o dinheirinho, toma lá o livrinho. Tem havido casos de autores que resolveram testar até que ponto chega a indiferença com o tipo de lixo que acaba publicado, propondo a edição das maiores porcarias que conseguem criar, textos manhosos, propositadamente cheios de clichés, de buracos no argumento, de erros de português, de tudo e mais alguma coisa, e acabaram por obter a lógica resposta de oh, meu caro amigo, que obra magnífica, é claro que queremos publicá-la, o preço é xis.

Não, quem assim publica não tem livros publicados por editora nenhuma. Tem edições de autor encapotadas, pelas quais paga mais do que pagaria por uma edição de autor propriamente dita, e que apresenta fraudulentamente como edições a sério, procurando enganar o público, procurando levá-lo a crer que o que produziu teve o aval de uma empresa de profissionais do ramo.

As águas tornam-se ainda mais turvas porque várias destas empresas não se assumem. À primeira vista está tudo normal, mas nos bastidores circula dinheiro no sentido errado, ou são propostos contratos em que o autor é obrigado a comprar parte da edição (o suficiente para esta ficar paga, claro; tudo o que se vender depois é lucro). Mais fraude? Pois.

Se estas empresas não agissem assim fraudulentamente, se se apresentassem como prestadoras de serviços editoriais e não como editoras, nada teria a opor-lhes. As coisas seriam claras. As edições seriam o que são na realidade: edições de autor. E os produtores de conteúdos teriam empresas onde encontrar serviços que poderiam achar necessários. Os que não soubessem fazer paginação teriam onde contratar um paginador; os que precisassem de ilustrações saberiam quanto teriam de pagar pelo trabalho de um ilustrador; quem não fosse capaz de rever os próprios textos poderia ter acesso aos serviços de um revisor, e assim por diante. E depois editariam os seus livros em seu nome, sob a sua própria responsabilidade. Tudo claro, tudo às claras, tudo honesto.

Dir-me-ão: oh Jorge, mas toda a gente sabe que as edições de autor são uma porcaria…

Toda a gente poderá saber tal coisa, mas, se assim é, toda a gente sabe mal. Isso, contudo, já é conversa para amanhã. Por hoje, fiquem-se com um nome: Miguel Torga.

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