terça-feira, 9 de junho de 2015

Lido: Sonho Febril

Sonho Febril (bibliografia) é um romance de horror de George R. R. Martin, ambientado ao longo do Mississípi, durante a época áurea dos vapores fluviais, em meados do século XIX. O título, na verdade, é um trocadilho (coisa em que Martin é useiro e vezeiro, e eu que o diga), com que a tradução portuguesa lidou o melhor possível mas que não conseguiu evitar perder. No original, o livro chama-se Fevre Dream, o nome do vapor onde se desenrola boa parte da ação, e que faz referência ao rio Fevre, um modesto afluente do Mississípi que nele desagua perto da cidade de Galena (por cujo nome também é conhecido), na extremidade noroeste do estado do Illinois. Este nome, corruptela de uma palavra francesa que nada tem a ver com febres, mas sim com favas (!), é associado àquelas por semelhanças fonéticas e ortográficas com a palavra inglesa para febre, fever. E sonho febril, em inglês fever dream, mostra essas mesmas semelhanças, o que está longe de ser casual.

De facto, o enredo do romance pode bem ser encarado como um sonho febril, e dos pesados. Ao iniciar o livro conhecemos um homem do rio chamado Abner Marsh, dono de uma modesta companhia de navegação, quase a abrir falência, que alimenta o sonho de um dia possuir um vapor capaz de competir com os melhores (e vencê-los!) nas subidas e descidas do Mississípi. Mas para isso precisa de dinheiro, que não tem onde arranjar. Até que conhece um homem rico e excêntrico que lhe propõe sociedade, fazendo em troca algumas exigências invulgares que Marsh, embora hesitante, acaba por aceitar.

A primeira parte do romance acompanha a evolução dessa sociedade e a lenta tomada de consciência por parte de Marsh de que Joshua York, o sócio, não é bem o que parece. Que se trata de um vampiro.

Um vampiro bastante próximo da tradição ficcional dos descendentes do Conde Drácula, mas não exatamente igual ao mais famoso de todos os vampiros. York é um vampiro com muito em comum com os vampiros elegantes e sensíveis de Anne Rice, sujeito à Sede, como todos os da sua raça, mas livre dela até certo ponto graças a um preparado que desenvolveu e que a reprime, permitindo-lhe viver entre os seres humanos sem se ver obrigado a depredá-los.

A ligação deste livro às ficções de Anne Rice, aliás, é forte. Não só se serve também da ideia do vampiro sensível, como se ambienta mais ou menos nas mesmas geografias e numa época razoavelmente próxima. Martin parece ter querido pegar nas mesmas ideias e ambientes e criar com elas um livro um pouco mais negro, um pouco mais terra-a-terra, mais sólido em termos de verosimilhança, centrado mais no rio propriamente dito do que nas terras das suas margens.

E parece-me que conseguiu. Em parte, na parte que pouco ou nada tem a ver com vampiros, nas histórias do rio e dos seus homens, nas corridas dos vapores, na paixão de que Marsh dá mostras por tudo isso, este livro é uma homenagem a uma época e a uma forma de vida. E penso que é isso o que o livro tem de melhor, embora possa parecer um pouco herético que um tipo que praticamente vive literatura fantástica, como eu, o diga.

Claro, há tudo o resto. As personagens estão bem caracterizadas e são complexas, bem distantes das coisinhas bidimensionais que aparecem em tantas histórias deste género. O enredo, movido a conflitos interiores, a sonhos e a desejo de vingança e redenção, está muito bem amarrado. Há um pouco de maniqueísmo, com personagens, tanto humanas como vampíricas, que parecem ser inerentemente malignas e outras que, pelo menos na base, se mostram boas, mas é um maniqueísmo bastante atenuado por circunstâncias e formas de ver a realidade. E o livro está, obviamente, bem escrito, embora lhe falte o génio de que Martin dá mostras em certos trechos das Crónicas.

Mas este é um livro incomparável com as Crónicas de Gelo e Fogo: o tema é outro, a extensão também, foi escrito uns 15 anos antes, é muitíssimo menos complexo. Não tem nem algumas das qualidades das Crónicas, nem alguns dos seus defeitos. No entanto, pareceu-me ser um livro realmente bom. Gostei bastante.

Este livro foi comprado.

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