Diz-se com frequência que a ficção científica é a literatura das ideias, querendo com isso dizer-se que é aquela literatura em que ideias novas, invulgares, muitas vezes iconoclastas, encontram espaço para se desenvolverem literariamente. Muitas vezes, essas ideias são tecnológicas mas é raro que não tenham na literatura de FC um impacto social explícito, o que as transforma também em ideias sociais e por consequência políticas. Há quem tente esconder que assim é, há quem procure fechar os olhos à política que a FC sempre trouxe, e para isso conta com a ajuda de muitos dos autores do género que procuram camuflar a vertente política daquilo que escrevem com fragilíssimas capas de senso comum. Outros autores, porém, não perdem tempo com exercícios tão fúteis e assumem claramente o lado político dos seus trabalhos. E assim, por vezes, nascem as melhores e mais inesquecíveis obras do género, das Vinte Mil Léguas Submarinas à Guerra Sempre, do 1984 a Os Despojados, entre muitos eteceteras.
A assunção do lado político da ficção científica não é, contudo, nenhuma garantia de qualidade. Não faltam obras muito claramente políticas mas também muito, muito más. E este A Cidade da Ciência (bibliografia), do francês Maurice Vernon, é uma delas, mesmo dando o devido desconto à idade já razoavelmente vetusta da obra. E mesmo dando o devido desconto àquilo que lhe deu origem, que me parece razoavelmente claro.
O enredo conta-se em duas palavras. Numa sociedade totalitária, distópica, um grupo clandestino de Oposicionistas (sim, em maiúscula; é tudo em maiúscula neste livro) procura um herói para derrubar o regime que depressa se percebe que é dirigido não propriamente desde a capital (chamada, imaginativamente, Capitalopolis), mas de uma cidade secreta, onde ninguém não autorizado pode entrar e de onde ninguém não autorizado pode sair, a Cidade da Ciência do título. E claro que o encontra, ao herói. E claro que o herói vai acabar por heroicamente fazer os seus heroísmos e derrubar os mauzões dos cientistas e os piorezões dos que os dirigem. Tudo escrito naquele tom tonitruante dos escritores medíocres, que é sempre ridículo até à medula (com muitas Maiúsculas, pois), tudo inteiramente dependente da vontade e ação dos Líderes e dos raríssimos não líderes que acabam por agir, transformando-se obviamente também eles em Líderes. As personagens, mesmo as principais, resumem-se a recortes bidimensionais de papelão. Ou nem isso, talvez. Na verdade, até custam a chegar à bidimensionalidade. Tudo repleto do pior da pulp fiction e sem nenhuma das suas qualidades redentoras (para quem gosta), pois a verdadeira ação nem é muito frequente, ficando-se boa parte do enredo por conversas. Diálogos que, ainda por cima, são tão maus que se tornam inverosímeis, contribuindo decisivamente para tornar quase impossível suspender a descrença relativamente a tudo isto.
Quem consiga sacudir as teias de aranha com que tanta falta de qualidade acaba inevitavelmente por envolver o pensamento, acaba por compreender de onde vem a inspiração para este livro. Publicado dez anos após o fim da II Guerra Mundial, numa França ainda cheia de cicatrizes de guerra, tanto físicas como psicológicas, e mal refeita das barbaridades do regime nazi que só vieram a lume após o fim do conflito, este pequeno romance tenta ser um ataque violento ao tipo de investigação fria que psicopatas como Josef Mengele levaram a cabo nos campos de concentração nazis e em outras instalações criadas ou reformadas pelo regime à sua semelhança. É uma reação compreensível, ainda que equivocada quando resume a ciência a isso e esquece o papel que essa mesma ciência teve na derrota do Eixo, e até poderia ter dado origem a uma obra de qualidade. Mas a concretização de Vernon é tão desastrada que o que se obtém deste livro é sobretudo uma enorme sensação de vergonha alheia.
Em suma: um livro péssimo.
Este livro foi comprado.
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