José Gomes Ferreira era outro autor que eu, por já ter experiência prévia com a sua (muito boa, diga-se) ficção fantástica, tinha esperança de vir a enriquecer o Bibliowiki com mais um continho. Assim, comecei a ler A Sombra, um conto que a princípio parece "apenas" (entre aspas porque não é pouco) irónico, bem escrito e bem construído. Um conto muito mundano, sobre um homem que um belo dia acorda feliz e é importunado cidade fora por conhecidos e desconhecidos, que parecem decididos a aborrecê-lo, desbobinando um autêntico rol de desgraças, em pleno nacional-coitadinhismo, enquanto ele se recusa a deixar-se afetar. Até que deixa. Bem pertinho do fim.
E é aí que o conto, que até aí é realista até à medula, ganha uma espécie de fantástico envergonhado, também ele irónico, pois a sombra do homem ganha autonomia e trata-lhe da saúde ao coitadinhismo com uma atitude bem firme. Essa irrupção fantástica parece ter incomodado Ferreira, que a justifica com um parágrafo entre parêntesis e em itálico em que se dirige diretamente ao leitor pedindo-lhe que acredite naquela parte que é "evidentemente mentira". Mas se o próprio autor admite que essa parte é evidentemente mentira, quem pode afirmar que tudo o resto, incluindo o parêntesis, também não o é? Quem pode afastar a possibilidade de a única parte verdadeira de todo o conto ser o ataque de rebeldia da sombra? Ninguém.
De modo que sim, caro José Gomes Ferreira, o conto é fantástico. Incomode isso ou não. Mas esse facto é secundário para todos os que não andam à procura de material para alimentar o Bibliowiki, porque o que o conto é acima de tudo é um divertido e bem feito ataque aos choradinhos.
Se gostei? Sim, gostei.
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