segunda-feira, 31 de maio de 2004

Correcção de um erro

Quando apresentei a spam fiction, disse que o Gabriel Bozano tinha um projecto semelhante mas que tinha acabado com ele entretanto. Erro meu. Acontece que aquele post apanhou-o em plena mudança de endereço do site, o que fez que quando eu fui à procura não tenha encontrado nada.

Pois, a Enciclopédia dos Países Fantásticos (a propósito: olha a gralha, Gabriel) continua activa. Um pouco parada, mas activa.

Correcção feita, siga a paródia.

Sci-fi teen pop?

Mais um comentário do Boemius que deu resposta que saltou para o corpo principal do blog. Pergunta-me ele se A Triste Sina de uma Rapariga Triste é "sci-fi teen pop".

Bem, acho que não. Embora me desse um certo gozo arrancar com um movimento, duvido que os apreciadores de literatura pop, ou teen, ou teen pop, gostem deste conto. É que ele é fundamentalmente sarcasmo.

Isto foi uma tentativa de construir uma personagem que seria a projecção, para um futuro relativamente próximo no qual técnicas de substituição de ADN funcionam assim como tratamentos hormonais radicais e muito rápidos e são aplicadas à cosmética, de uma daquelas meninas que gastam os dedos a mandar SMS's para o Sol Música ou a MTV e do seu pequeno e fútil mundo.

Como não vejo nenhum sinal de que o número de tais meninas diminua no futuro, bem pelo contrário, também é um exercício de realismo.

Quanto à forma, tentei adaptá-la ao tema, como faço sempre. E se realmente saiu um estilo pop consegui exactamente o que pretendia. Afinal, nada mais pop que as meninas que gastam os dedos a mandar SMS's para o Sol Música ou a MTV...

O grande paradoxo deste blog...

...é que tem 120 visitas diárias e quase ninguém o visita.

sexta-feira, 28 de maio de 2004

Sobre "A Triste Sina de uma Rapariga Triste"

Não há muito a dizer sobre esta terceira spam-fiction (segunda terminada). É a minha tentativa para cativar público feminino aqui para os meus garatujos. E daí, talvez não. Também é um exercício de construção de personagem. Sim, isto é mesmo.

E é, claro, um esboço. Mesmo assim espero que gostem.

Spam Fiction (3)

A triste sina de uma rapariga triste


Baseado num spam intitulado "I'm a sad girl..."


Sou uma rapariga triste.
O Robinho não gosta de mim.
Oh, sim, já fiz tudo. Mandei-lhe mensagens animadas, comigo a ser simpática para ele, só para ele. Não resultou. Mandei-lhe mensagens de corpo inteiro para ver se ele via no meu corpo o que não tinha visto em mim. Não resultou. Até lhe mandei mensagens só de texto, porque podia ser que ele fosse daqueles que têm o fetiche das letras. Não resultou. Tentei depois ser sedutora e comprei num leilão online um body estranhíssimo — mas a Paty disse-me que os homens gostam — e vermelho — isso eu já sabia que os homens gostam —, vesti-o por baixo de um fatinho transparente e fui ter com ele fazer-lhe olhinhos e boquinhas. Não resultou. Depois, tentei o recato e o embaraço, pensando em coisas que me fazem corar e desfazendo-me em risinhos ao pé dele. Não resultou. Pintei-me muito. Não resultou. Fui ter com ele com a cara que vejo ao espelho depois de acordar (bem, mais ou menos). Não resultou.
O Robinho não gosta de mim.
Mas eu não sou mulher para desistir assim, por dá cá aquela palha.
Ainda se o Robinho fosse homossexual... mas não é, que eu bem o vi com a serigaita da Amélia aos beijinhos e abracinhos e ela a derreter-se toda junto dele.
Grande puta!
Mas ela há-de ver. Eu não sou mulher para desistir assim, por dá cá aquela palha. Eu sei das coisas. Vejo filmes e novelas e falo com as minhas amigas, até mesmo em pessoa. Ela há-de ver.
A Amélia é minha amiga, pensa ela. Fizemos amizade há semanas, na sala virtual da Cosmo. Ela, com o corpo dela própria, vestia um modelo exclusivo de um estilista qualquer japonês, e eu, disfarçada de Sófi, também. Quer dizer: não o mesmo modelo, claro. Mas parecido. Ela achou engraçado, e veio ter comigo a dizer que nós devíamos tornar-nos amigas porque tínhamos muito em comum. Eu ri-me muito — quando quero, sei bem ser uma vaca hipócrita — e disse que também achava. Se lhe passasse pela cabeça que o que nós tínhamos em comum era eu ter andado a perguntar que tipo de porcaria vestia aquela rameira nas salas virtuais...
Mas pronto, ficámos amigas. Amigas com aspas, está bem de ver. Falámos de roupas, depois de modelos, depois de signos, depois de roupas outra vez, depois de actores giros e finalmente de homens. Tentei não mostrar demasiado interesse quando a conversa passou pelo Robinho, mas não havia perigo, porque foi só de raspão e ela estava distraída.
Nessa noite, saí da sala virtual triste. O meu quarto estava escuro como uma ameaça, e eu corri a acender todas as luzes. Não gosto do escuro. Faz-me pensar em bichos rastejantes e castanhos — vi um, uma vez, e ia morrendo de susto. E depois outra vez, de nojo.
Mas adiante: continuámos a encontrar-nos, sempre na sala da Cosmo, sempre vestidas de quase igual, como as melhores das amigas. Aos poucos, ela começou a contar-me coisas do Robinho, o que o Robinho fazia, o que o Robinho dizia, o que ela sentia quando estava com o Robinho e eu, tentando reprimir a raiva, tentava dirigir a conversa para o que me interessava mesmo: o que o Robinho gostava. Sem grande sucesso. Ou a Amélia não sabia lá muito bem o que é que agrada ao Robinho, ou tentava esconder o que sabia, até mesmo das amigas.
O que vale é que uma ou outra coisa lá ia caindo, quase por acaso.
Foi assim que fiquei a saber que o Robinho gostava do peito com uma certa forma. Parece que, para ele o peito ideal devia parecer-se com metade de um limão. E o meu, que mais parecia uma ervilha...
Pus-me logo a fazer tratamentos, claro. Há agora uns adesivos novos, os Genepor, que te mudam o corpo da maneira que quiseres. A caixa tem uma porção de palavras complicadas, substituição genética, e não sei quê, replicação de ARN, e não sei que mais — eu não percebo nada disso. Mas disseram-me que funcionava, e eu experimentei.
Funciona mesmo, sabiam? E só tive de esperar uma semana até poder ir ter com o Robinho com um vestido de alças e um decote gigantesco para que ele visse tudo.
E quando eu digo tudo, é tudo.
Não resultou.
Mas não desisti. Já vos disse que não desisto assim por dá cá aquela palha, não já?
Voltei para a sala virtual da Cosmo, mas a Amélia não estava e andei por ali horas, meio perdida, a trocar olás e sorrisos com perfeitas desconhecidas. Levei todo esse tempo a perceber que naquele dia não iria sequer conseguir roubar mais algum segredo à Amélia, e quando finalmente o percebi, quase fugi dali para fora, de volta ao meu quarto.
Chorei muito nessa noite.
Com as luzes bem acesas.
Passaram-se vários dias, sempre na mesma. Entretanto, o efeito do Genepor ia passando e o meu peito voltava devagarinho ao seu triste estado normal. Não estou a dizer isto por nada de especial, não pensem que se nota alguma coisa na sala virtual, que eu não tenho instalada aquela parvoíce do espelho virtual. Prefiro ser lá dentro tão voluptuosa quanto quiser. Eu, e a maior parte das pessoas que eu conheço. Até já ouvi histórias bem picantes com raparigas que se fazem passar por homens. Umas esgrouviadas.
Mas às vezes, misturo um bocadinho a vida virtual com a real, e nem sempre consigo agir de um dos lados da fronteira conforme a pessoa que sou desse lado da fronteira. Olhem os seios, por exemplo: na sala virtual, no meu disfarce de Sófi, sou bem fornecida, e já tenho dado por mim a exibir as minhas tristezas na vida real, como se tivesse alguma coisa para exibir. E vice-versa, claro.
É triste ser assim, despassarada.
Mas estou a perder-me. Voltemos ao que interessa.
Passaram-se vários dias, sempre na mesma: eu ia à sala da Cosmo à procura da Amélia e nada de Amélia. Deambulava por lá durante horas, quase sempre sozinha, e depois voltava para a tristeza do meu quarto e para a minha actividade preferida nele: ensopar lencinhos de absorvan. E, durante todo esse tempo, o pensamento que não me largava os sacos lacrimais era só um:
O Robinho não gosta de mim.
Já começava a achar que iria ter de arranjar outra forma de retomar contacto com a Amélia, ou até outra maneira totalmente diferente de saber coisas do Robinho, quando, enfim, dei de caras com a minha rival no sítio de sempre.
Fiz-lhe uma festa. E nem precisei de fingir muito. Logo de seguida, como é evidente, crivei-a de perguntas, intercalando sorrisinhos com beicinho de amuada.
— Então por onde andaste? Não soubeste avisar? Passou-se alguma coisa? Nunca mais ninguém te viu, zangaste-te? E o Robinho?
Sim, perguntei-lhe mesmo pelo Robinho, assim, sem mais nem menos, de chofre.
O que vale é que ela estava distraída, como é hábito.
— Oh, não me digas nada! — respondeu-me — Andei por fora precisamente por causa do Robinho. Então não é que uma vaca qualquer andou a atirar-se ao meu homem? Tive de fazer horas extraordinárias, para reparar os estragos. Se apanho aquela barata, desfaço-a!
Acho que soltei um soluçozinho ou coisa do género.
Pelos vistos tinha quase resultado. Quase. Se não tivesse sido a Amélia...
Grande puta!
— É mesmo assim — consegui dizer. — Se não temos cuidado com os nossos homens, é um ar que se lhes deu. O que não falta por aí é cacatuas prontas a ferrar-lhes o bico.
Claro que a cacatua era ela. E, oh, que prazer foi vê-la a concordar comigo!
Mas com a Amélia as irritações não duravam muito e não demorou até que a nossa conversa regressasse ao normal: roupa, modelos, signos, roupa outra vez, actores giros, homens e, de vez em quando, e de raspão, Robinho. E daí não saímos durante vários dias, eu sempre à cata de alguma informação útil e ela, sem dar por nada, a falar de porcarias.
Oh, claro que eu gosto das minhas conversas sobre trapos, modelos, signos, homens e actores. Mas o que eu queria era saber do Robinho!
Quem espera sempre alcança, dizia-se antigamente, e finalmente lá caiu qualquer coisa de útil nos meus ouvidos sequiosos.
Pelos vistos, o meu Robinho pelava-se por olhos verdes.
E os meus, claro, tinham de ser castanhos.
Comprei mais um pacote de Genepor para os seios e um frasquinho de Oculindo, um produto novo, em aerossol, que se borrifa para dentro dos olhos e lhes faz um tratamento cosmético completo, incluindo uma mudança da cor da íris tão perfeita que é como se tivéssemos nascido com a cor nova. Quando o crescimento do peito se completou, pus outro vestido, ainda mais transparente e decotado que o anterior, obtive magicamente os meus olhos verdes, fiz tudo o que pude para realçá-los à base de maquilhagem, e parti para a caça.
Estava linda. Mesmo linda.
Mas não resultou.
O Robinho não gosta de mim.
Em compensação, passei uma noite esplendorosa com um amigo dele, o Arnaldo. Não tanto pelo sexo, que nisso ele não era grande coisa (ou então era eu que não estava para aí virada, sei lá), mas mais pelo que o Arnaldo me contou do Robinho.
Falámos dele a noite toda.
E nem precisei de puxar a conversa: o Arnaldo parecia ainda mais fascinado pelo meu homem do que eu. E sabia muitas mais coisas dele do que eu, muitas mais.
O Arnaldinho revelou-se uma mina.
Fiquei, portanto, a saber que o Robinho tem um fraco por raparigas de 16, 17 anos, e que gosta delas com pernas longas, estreitas e flexíveis — pernas de gazela, disse o Arnaldo —, que simplesmente adora uma tatuagem atrevida num sítio íntimo, que perde a cabeça por mulheres de voz aguda, desde que não seja estridente, e que gosta de cabelos com reflexos exóticos. Ah, e um cheiro qualquer que o Arnaldo não me conseguiu descrever. Parece que o Robinho fala muito do cheiro das suas mulheres, mas diz que não tem palavras para o descrever. O resto foi óptimo, mas esta última parte deixou-me um bocado frustrada. Ter sido só isto que consegui saber...
Bem, para ser franca não foi: descobri também que ele tem uma tara secreta por buços.
Esta informação fez esmorecer um pouco a minha paixão pelo Robinho. Poderia eu estar mesmo apaixonada por um homem que gosta de... buços? De mulheres de bigode?
Andei um dia inteiro a analisar os meus verdadeiros sentimentos, e tanto os analisei que ao fim da tarde estava pronta, pensava eu, a esquecer todo aquele assunto, esquecer o próprio Robinho, e devolver à minha vida um pouco de serenidade. Mas depois cruzei-me com ele na rua e fiquei especada, a olhar.
A olhar, sim, dirigindo olhares de enlevo ao Robinho e lançando-os furibundos à rameira da Amélia, que se esfregava nele como se fosse uma toalha.
Se os olhos pudessem matar, juro que estaria agora a fugir da polícia.
Aquela puta, puta, puta, puta!...
O pior de tudo foi que o Robinho nem reparou em mim. Pudera: não tenho pernas longas, estreitas nem flexíveis, nem tatuagens, nem nada de exótico no meu cabelo louro, nem buço, nem voz aguda e muito menos 16 anos. Assim, não admira que o Robinho não goste de mim.
Fui logo para casa, ai, tão triste, espalhando pelas ruas um rasto de lágrimas.
Não dormi nessa noite. Mas quando a manhã começou a espreitar entre os prédios da cidade, encontrou-me resoluta, de decisão recém-tomada. É que eu não desisto por dá cá aquela palha, nem mesmo quando depois de uma palha vem outra, e outra, e outra, e um fardo inteiro. Eu não desisto, ponto final.
Liguei-me à minha biutichópe e encomendei uma remessa inteira de pacotes de Genepor, de vários tipos, um frasco novo de Oculindo, uma bisnaga de Courobelo, que é uma pomada que se espalha no couro cabeludo e que transforma, sozinha, a cor dos cabelos, uniformemente, da raiz até às pontas. Mandei vir também dois emplastros de Genetatu, que são assim uns adesivos que vêm com um produto qualquer (DNA? Se calhar...) arranjado aos desenhos, e que, quando se cola na pele, cria uma tatuagem, muito depressa e muito perfeita. Encomendei um coração, para pôr na omoplata, e um escorpião, para pôr... bem... algures. E arranjei também uma carteira de Heliogeias, grageias que se tomam para tornar a voz mais aguda, e um frasco de Pilosan, que estimula o crescimento dos pêlos corporais. E, para rematar, a encomenda ficou completa com um tratamento completo de Filosostone. Custou-me os olhos da cara, o Filosostone mas, se cumprir o que a propaganda anuncia, irá valer bem a pena.
Rejuvenescimento, cá vou eu!...
Assim que as coisas chegaram, fechei-me em casa e tratei de começar imediatamente a aplicar os produtos. Levei quase um mês em alterações, suportei dores e tudo, apanhei uma irritação de pele no sítio onde coloquei um dos emplastros de Genetatu (só depois vi que já estava fora do prazo) que precisou de anti-histamínicos para passar — mas a tatuagem ficou lá, isso é que importa — enfim, passei um mau bocado.
Mas quando tudo aquilo acabou, não reconheci a rapariga que olhava para mim, do espelho, com um sorriso de orelha a orelha a fazer-lhe covinhas nas bochechas.
Era um bocadinho esquisito, mas como já estava habituada a acontecer-me o mesmo nas salas virtuais, não estranhei. Na verdade, já estava à espera.
Do que não estava à espera é de não ter nenhum conjunto que servisse no meu corpo novo. Nada do que tinha me ficava bem: as minhas velhas roupas ficavam-me todas larguíssimas e curtas, além de não jogarem mesmo nada com as novas cores dos meus olhos e cabelo.
Até a roupa interior parecia disforme. Só conseguia vestir o body vermelho, que era ajustável, à antiga, com colchetes e velcro, e um fato de tecido inteligente, o meu fato mais caro, que se ajustava sozinho, à moderna.
Ainda por cima, os tratamentos tinham-me deixado as finanças um bocado em baixo, e portanto não ia poder comprar nada de extravagante. Mas tinha de comprar qualquer coisa! E como não confiava no meu olho para as minhas novas medidas, não podia encomendar nada online, tinha de ir à loja, em pessoa, provar os trapos novos.
Olhem, perdi a cabeça e esgotei o saldo. Fiquei sem saber como iria viver o resto do mês.
Mas foi por uma boa causa. O Robinho vale todos os sacrifícios.
No dia seguinte, vesti-me como a adolescente sofisticada que passara a ser, pus o spray nos olhos e pintei-os à volta, exagerando menos na dose do que da outra vez, espetei um travessão no meu novo cabelo ruivo com uma madeixa arroxeada, passei com a escova dos dentes pelo meu buço recém-nascido, mirei-me e remirei-me, achei-me fabulosa e fui ter com o Robinho.
Não resultou. Oh, não, não resultou!
O Robinho não gosta de mim.
Voltei para o meu quarto e ensopei um carregamento inteiro de absorvan.
O Robinho não gosta de mim.
Pior: tinha esgotado todas as possibilidades. Sim, não sou rapariga para desistir, nem que seja soterrada por um carregamento de palha. Mas se chego a um ponto em que não vejo caminho alternativo nenhum, tenho mesmo que o fazer, por mais que não queira.
Desistir do Robinho?
Oh, tristeza sem fim!
Mas que fazer, se o Robinho não gosta de mim?
E, pior que tudo, depois do Robinho foi o Cristiano, o Alberto, o Xiquinho e o Mané.
Nenhum deles gosta de mim! Nenhum!
Estou reduzida a escrever bilhetes perfumados, cheios de corações e florinhas, que já não tenho coragem para mandar a ninguém, e a passear-me pelas salas virtuais com disfarces de adulta.
É que o pior de todos os piores, pior ainda de nenhum dos meus homens gostar de mim, é que exagerei nos tratamentos que fiz na altura do caso do Robinho.
Eu não sabia que o Filosostone não se podia misturar com o Genetatu. Eu não sabia! Não sabia! Nem sequer fazia ideia alguma de que existia uma coisa chamada "potenciação de efeitos cruzados". Nunca me passou pela cabeça que existisse a possibilidade de efeitos irreversíveis. De efeitos permanentes. Nunca.
Tudo isto se passou há dez anos, mas para mim é como se tivesse sido ontem. Sim, porque continuo igual. As mesmas pernas de gazela, os mesmos seios de limão, as mesmas tatuagens, o mesmo buço, os mesmos cabelos com madeixas que agora são de várias cores.
Só os olhos voltaram ao normal. De resto...
Sou uma rapariga triste, presa numa eterna adolescência.

19 megabytes

O meu novo filtro anti-spam atingiu um mês de actividade, e começa agora a mandar o lixo do folder "junk" para o "trash". Enquanto manda e não manda, no entanto, deixa-me saber com exactidão quanta porcaria recebo eu todos os meses.

A resposta é assustadora: entre spam, vírus e outros tipos de lixo, fui destinatário no mês passado de cerca de 4700 mensagens merdosas que somam 19 Megabytes, fora anexos.

E eu sou um. Multipliquem isto pelos utilizadores de email que por aí há e vejam a quantidade de porcaria que circula todos os dias por esta internet fora, a estrangular ligações e fazer perder tempo a gestores de sistemas e utilizadores comuns.

É o dilúvio, é o dilúvio...

<-------- Os livros que estão ali

Cá estou eu de novo a falar-vos dos livros que estão ali ao lado. Eu avisei-vos que não iria demorar muito tempo até haver renovação.

Pois lá se me acabaram o Homens-Aranhas, do Rui Zink (um livro de contos muito engraçado, nos dois sentidos da palavra, e que para mim teve o interesse suplementar — e a surpresa — de encontrar em 9 textos (a BD não conta) três perfeitamente enquadráveis na ficção científica e fantástico), O Romance de Nostradamus — O Engano, de Valerio Evangelisti (talvez tivesse sido melhor que o primeiro volume se não fosse uma revisão deficiente, que deixou passar demasiadas gralhas) e O Dia em que o Mar Desapareceu, do nosso colega blogger José Carlos Barros (muitíssimo bem escrito, à parte um detalhezinho sem importância aqui e ali, como a repetição de "marulhar sobressaltado do Levante" logo no início, mas que na minha opinião falha enquanto conto de FC porque a parte científica da coisa é relegada a uma função meramente parabólica, que não me agrada — sou um diabo de um racionalista, é o que é... :) )

Para o lugar destes três rapazes, entraram:

- Antologia do Esquecimento, de Henrique Manuel Bento Fialho, é um livro de poesia que o henrique publicou em edição de autor em 2003. 118 páginas.
- O Romance de Nostradamus — O Engano, de Valerio Evangelisti, é a terceira e última parte da biografia romanceada e fantástica de Nostradamus. Edição da Editorial Presença (2002), 365 páginas.
- O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury, é uma compilação de uma série de contos do grande autor americano, enquadrados na história de um homem coberto de tatuagens com vida própria. Edição das Publicações Europa-América, 245 páginas.

terça-feira, 25 de maio de 2004

O que está incompleto na spam fiction?

Um comentário do Boemius sugeriu-me a necessidade de concretizar um pouco melhor o que eu entendo por "esboço que ainda precisa de muito trabalho para virar obra" quando me refiro à spam fiction. Para quem não leu, ele pediu que se publicasse já o primeiro spam fiction, que permanece incompleto, porque, como tudo isto é um trabalho em progresso, não fazem grande diferença umas palavrinhas a mais.

Pois, mas eu acho que fazem.

A minha forma de escrever envolve várias fases: uma primeira fase em que efectivamente escrevo, voltando com frequência atrás para me voltar a sintonizar com a história e fazer correcções, uma segunda fase em que termino o que escrevo, e várias fases subsequentes em que revejo o que ficou escrito. E aqui há muito trabalho. Só para dar um exemplo, no princípio do ano passado escrevi um romance (que é capaz de ser publicado ainda este ano, já agora) em dois meses... e depois andei quase quatro a revê-lo. São questões como uniformizar o tom da escrita, ajustar melhor estrutura do que se conta ao que se quer contar, evitar descontinuidades espúrias e incoerências mais subtis, etc., etc. Muita coisa.

Ora bem, nas spam fictions omito as revisões. Faço, no máximo, uma única revisão global para remover incoerências graves e erros crassos de português (espera-se). Mas as histórias têm de estar completas, porque, se me irrita como irrita ler histórias incompletas, não vou propô-las a quem me visita o blog.

Completas, mas não definitivas. Essas estarão no tal livro (que, se continuar a fazer coisas tão grandes, serão mas é dois).

segunda-feira, 24 de maio de 2004

Sobre "Flor do Trovão"

"Flor do Trovão" é a primeira spam-fiction publicada na Lâmpada, mas corresponde à segunda semana, e daí o "(2)". Littleton ficará à espera de eu ter uma ideia para uma história realmente curta, que deixe tempo para acabar aquele conto. Mas ando com escassez de ideias para histórias curtas, o que é uma chatice — esta, por exemplo, tem quase 3000 palavras, e Littleton terá ainda mais. Não é o que vocês costumam ler em blogues, e é provável que muita gente se assuste ao ver o tamanho do bicho, mas, olhem, foi o que saiu.

Quanto à história em si, (e quem não quiser spoilers, não leia este parágrafo) é um conto de ETs sem personagens humanas, passado num planeta onde a atmosfera tem duas camadas diferentes, uma superior, respirável para os nossos ETs, e a outra inferior, venenosa. Os ETs são subdesenvolvidos, supersticiosos e acreditam em profecias, e Flor do Trovão é, aparentemente, a concretização de uma dessas profecias.

Como disse na apresentação da spam fiction, façam favor de encarar isto como um esboço que precisa de bastante trabalho para virar obra, OK?

Spam Fiction (2)

Flor do Trovão


Baseado num spam intitulado "Thunderflower"


Flor do Trovão nasceu quando o trovão se enrolava nos picos das montanhas, ao fim de um dos primeiros dias depois do inverno. Quebrou a casca do seu ovo no instante preciso do relâmpago, e assomou a ponta da primeira garra logo após o estrondo. Começou assim a sua lenda. No dia seguinte já todo o povo tuu sabia do seu nascimento. Flor do Trovão nasceu célebre e célere, pois de todos os recantos das montanhas chegavam oferendas, todos os tipos de alimento, sempre da melhor qualidade. Flor do Trovão nunca teve mais do que um momento de fome e cresceu, saudável e bem alimentada, maior e mais forte que qualquer outro tuu. Olhá-la era um regalo, e os privilegiados que tinham a sorte de tocá-la voltavam para as suas tocas com a felicidade estampada nos opérculos.
A profecia era clara: um dia nasceria uma fêmea tuu quando um só sol pairasse sobre o horizonte e o trovão se enrolasse nos picos das montanhas. Nasceria entre o relâmpago e o estrondo, e teria uma vida abençoada pelas deusas. Seria ela a primeira a atravessar a névoa dos miasmas, que empurra o ar para fora das covas respiratórias, sendo assim a primeira a encontrar um caminho para sair das montanhas. Aquela que Sai, seria o seu nome secreto, dito apenas em surdina, de abdómen em abdómen. E seria ela quem, finalmente, lideraria o povo tuu na longa viagem de que falavam todas as lendas para a terra que, também segundo as lendas, fica para lá do mar de névoa.
A vida era dura nas montanhas. Havia doenças, havia tempestades muito fortes que levavam consigo tudo o que conseguissem agarrar, havia secas, havia os koo e os tnee, que montavam emboscadas nos recantos dos penhascos mais alcantilados e devoravam tudo o que conseguissem trincar, havia a névoa dos miasmas, que por vezes subia as ladeiras menos inclinadas dos vales e ficava por lá, pairando, até que a luz dos dois sóis a fazia retirar-se, deixando para trás, tantas vezes, os cadáveres dos tuu que não conseguissem fugir a tempo. Havia então que disputá-los aos kráá, e os kráá eram umas bestazinhas viciosas.
E havia os terríveis invernos das montanhas, quando um dos dois sóis morria e era devorado pelo outro. Era um fenómeno necessário, bem se sabia, pois só assim o sol que era alimentado poderia gerar um novo sol algum tempo depois, mas o preço que os tuu pagavam pelo ciclo de nascimento e morte dos seus sóis era terrível. Mais que terrível. Era a única altura em que a névoa dos miasmas parecia desistir de subir as montanhas, mas não servia de nada, porque estas ficavam cristalizadas numa capa de gelo, que parecia chegar de todos os lados ao mesmo tempo, depressa demais para se conseguir fugir. E, oh, sim, muitos tentaram. Nenhum regressou.
Nesses invernos, tuu que não se encasulasse, morria. Era tão simples como isso. E muitos dos que se encasulavam morriam na mesma, se não conseguissem tecer o casulo perfeitamente, se deixassem falhas, portas entreabertas por onde o gelo pudesse entrar. E os tuu tinham plena consciência de que as coisas eram assim. Aldeias inteiras faziam os seus casulos numa tristeza sem nome. As montanhas já cheiravam a saudade mesmo antes do inverno começar, tanto era o odor que os tuu exalavam nessa época. Depois o cheiro congelava, como tudo o resto, e como quase tudo o resto, descongelava no fim do inverno quando os sobreviventes saíam dos seus casulos e olhavam com espanto os que não saíam. Havia sempre espanto, sempre. Nunca ninguém teve bem a certeza se por se estar vivo, se por os outros não estarem.
Sim, a vida era dura nas montanhas. E por isso nas lendas tuu havia sempre alguém que delas saía e encontrava para si paisagens mais amenas. A maior dessas lendas falava da vida de Aquela que Sai.
Flor do Trovão.
A que nasceu no fim do inverno, quando o trovão se enrolava nos picos das montanhas e o ar cheirava a saudade.

Flor do Trovão cresceu ignorante. Sabia que tinha mais que os outros tuu, mais um pouco de todas as coisas. Sabia que a sua vida era diferente, mas nunca perguntou a ninguém, nem mesmo a si própria, porquê. Para ela, era natural. Cresceu a pensar que as coisas eram assim porque assim tinham de ser, que ela era o que era e os demais estavam apenas no mundo para servi-la, alimentá-la e resolver-lhe os problemas. Só quando ultrapassou toda a gente que conhecia quer em peso quer em altura, ficando diferente de uma forma diferente, não já aquela pessoa pequena porque jovem, à espera que o tempo passasse e o crescimento se completasse, só então começou a fazer perguntas a si própria. Seria ela também uma tuu? Pertenceria mesmo àquele povo? O sangue branco dos que a rodeavam seria igual ao seu próprio sangue branco? Mesmo igual?
Sempre confiara no espelho das águas para lhe dizer quem era, mas agora o espelho em vez de responder levantava mais perguntas, muitas perguntas. E se afinal não fosse uma tuu, se fosse um alguém outro, um ser à parte, talvez especial? Poderia confiar nos tuu? Nos outros tuu? Poderia fazer-lhes perguntas e confiar nas respostas que eles dessem a essas perguntas?
A partir dessa altura, Flor do Trovão andou ensimesmada. Não falava, pouco comia, isolava-se no topo do seu penhasco favorito, de onde podia ver duas aldeias e um mar de névoa das miasmas, ao longe. Dali, assistia às idas e vindas dos seus dissemelhantes e pensava, em silêncio.
Todos os dias vários tuu iam procurá-la e tentavam entabular conversa, exalando odores suaves e calmantes. Mas Flor do Trovão mantinha o opérculo fechado, desconfiada, e raramente respondia.
Nas aldeias, os tuu inquietavam-se. As conversas só tinham quatro temas, os três do costume e um novo: o alimento, a névoa das miasmas, o próximo inverno e Aquela que Sai. E, a pouco e pouco, o último tema foi-se sobrepondo aos outros três até quase monopolizar todas as palavras trocadas nas aldeias. Pois, se bem que a princípio se tivesse pensado que aquele isolamento iria ser passageiro, à medida que o tempo passava e nada mudava os sussurros foram passando a ter um tom mais agudo, mais preocupado. Tentando compreender o que se passava com Flor do Trovão, os tuu desenvolveram opiniões diversas e desencontradas, e foram deixando a pouco e pouco de se compreender uns aos outros, embora a opinião mais popular (ainda que em múltiplos cambiantes) fosse que talvez se estivesse perante uma qualquer metamorfose, uma tomada de consciência, enfim, qualquer coisa que levasse a jovem a transformar-se, de facto, em Aquela que Sai.
Mas o grande pomo de discórdia era se se devia ou não contar-lhe das lendas.
Nunca ninguém contara as lendas do povo a Flor do Trovão. Ela não frequentara o centro de ensino, como os outros jovens, e como ninguém teve algum dia a certeza de saber como dizer àquela jovem que, segundo as lendas, era predestinada, foi-se adiando esse momento para mais tarde e, de preferência, para outros tuu. Além disso, havia, também, a ideia de que o conhecimento da profecia poderia de alguma forma influenciar a sua concretização. E os tuu não queriam de forma nenhuma que a profecia não se concretizasse. A vontade de sair das montanhas era demasiado forte.
Mas agora...

O impasse prolongou-se. Flor do Trovão pouco comia e ia emagrecendo, ao mesmo tempo que a preocupação do seu povo aumentava e as suas discussões iam azedando e subindo de tom. De murmúrios passou-se a latidos, destes chegou-se aos rosnidos e até mesmo aos grasnidos inarticulados, sinal claro de raiva. Quanto a Flor do Trovão, estava alheia ao que se passava, encerrada que estava nos seus próprios pensamentos desencontrados. Foi só quando o som agudo dos grasnidos começou a ecoar nos picos das montanhas que começou a aperceber-se de que qualquer coisa se passava. Mas nada fez, claro: não devia ser coisa que lhe dissesse respeito. Que tinha ela a ver com os assuntos dos outros? Nada.
Até que chegou um dia em que foi acordada por um concerto de rosnidos que soavam muito próximos e muito irados. Levantou-se e debruçou-se do seu penhasco, com a curiosidade despertada. Lá em baixo, junto à curva do rio, dois grupos de tuu dançavam um contra o outro, mostrando os pêlos das costas, eriçados em afronta. Flor do Trovão instalou-se na beira do penhasco, a assistir, um pouco divertida, um pouco curiosa, enquanto os dois grupos iam passando lentamente da dança ritual à violência. Um dos grupos era mais numeroso, mas como o outro parecia mais determinado, a luta foi equilibrada e só terminou quando o vermelho da relva se tinha já tornado cor de rosa com o sangue derramado, e começavam a chegar kráá de todos os lados para disputar os corpos dos feridos aos grupos em confronto, que gastavam já mais tempo e energia a manter os necrófagos afastados dos seus companheiros do que a combater os adversários. Flor do Trovão não gostava dos kráá, nisso era igual a todos os outros tuu, e sabia-o. E quando viu um dos combatentes ser arrastado, debatendo-se, por um dos animais, desgostou-se com o espectáculo e regressou ao seu recolhimento, fechando todos os sentidos ao burburinho.
Só soube que a contenda tinha tido um desfecho qualquer quando, no dia seguinte, viu aproximar-se do seu penhasco uma grande comitiva, encabeçada por dois tuu muito feridos, repletos de manchas esbranquiçadas, que se apoiavam um ao outro para conseguirem vencer o caminho que levava até ali.
Ao chegarem, explicaram que eram os dois chefes dos grupos que se tinham confrontado na véspera, no sopé do penhasco, que da luta tinha saído um deles vencedor, que por esse motivo as suas ideias seriam postas em prática e que isso significava que tinham uma coisa muito importante a dizer a Flor do Trovão o que, se fosse possível, queriam fazer imediatamente.
Flor do Trovão não respondeu mas sentou-se, deixando claro que tinha ficado curiosa e que aceitava ouvir o que aqueles dois traziam para lhe dizer. Os dois tuu instalaram-se perto dela, murmurando de dor, imitados pela multidão que, entretanto, continuava a chegar e se tentava apinhar o melhor possível em todas as reentrâncias que a rocha proporcionava.
E depois contaram-lhe as lendas. Todas as lendas.

Demorou o resto daquele dia, o dia seguinte inteiro e ainda parte do outro a seguir. Não que houvesse assim tantas lendas para contar, nem que elas fossem muito compridas, mas, quando compreendeu que algumas daquelas histórias talvez lhe dissessem respeito, Flor do Trovão abandonou o seu mutismo passivo e começou a fazer perguntas. Muitas perguntas.
Quando, por fim, Flor do Trovão esgotou as perguntas e os outros esgotaram as respostas, o silêncio desceu sobre o penhasco, instalando-se como uma capa de veludo sobre cada pedra. Por essa altura, já eram poucos os tuu que resistiam por ali: eram histórias que já todos conheciam, e o interesse que a reacção de Aquela que Sai despertara, escoara-se quando se tornara claro que seria só composta de perguntas. Agora, ao chegar o silêncio, debandavam também os últimos resistentes e Flor do Trovão ficou só, com os dois líderes, numa imobilidade interrompida de vez em quando pelo fluxo de oferendas que recomeçava.
Passou-se de novo muito tempo, vários dias.
Nos vales, as conversas terminavam sempre na mesma pergunta, envolta em esperança e angústia: que vai decidir Aquela que Sai?
À mesma pergunta procurava Flor do Trovão dar uma resposta. Sentia-se ainda mais confusa que antes, pois se por um lado a vida que vivera até ali fizera finalmente sentido, se enfim compreendera exactamente quem era e qual o seu lugar no grande esquema das coisas, a verdade é que a sensação de ter uma responsabilidade sobre o dorso era inteiramente nova e não sabia bem como reagir-lhe.
Mas a indefinição não podia prolongar-se para sempre. Os dois tuu que tinham ficado consigo começavam a fazer perguntas subtis, a insistir, cheios de tacto, que o seu povo esperava uma resposta sobre se se iria mesmo, ou não, ter um líder que o levasse para fora da montanha.
Flor do Trovão finalmente decidiu. Ela era especial. Não tinha dúvidas quanto a isso. E, portanto, se a profecia falava num alguém especial que era capaz de levar os tuu para outro lugar, esse alguém só podia ser ela.
"Está bem", acabou por dizer.

Houve festa nas montanhas. Ao longo de vários dias, de todos os recantos saíam trinados de conjunto, enquanto os tuu se preparavam para abandonar as suas casas e enfrentar a névoa dos miasmas em busca de um lugar mais suave onde viver.
Flor do Trovão escolheu um dia e um local como ponto de reunião. O dia, era um dos dias de festa do calendário do seu povo. O local era um vale, plano e amplo, mas bastante inclinado, que era regularmente invadido pela névoa dos miasmas e desembocava perpetuamente no mar de névoa. Dali, a névoa só se retirava quando o inverno ia chegando, e era do que viam nos poucos dias que mediavam até que o gelo invadisse as montanhas, que os tuu sabiam que lá em baixo havia um outro vale que se cruzava com aquele, do outro lado do qual o terreno subia de novo muito, muito lentamente, ao longo de uma longa distância, para aquilo que poderia ser um planalto, situado para lá do horizonte.
No dia escolhido, a névoa apresentava-se revolta. Os ventos que sopravam no vale agarravam nela e enrolavam-na em espirais que percorriam trajectos imprevisíveis e iam desfazer-se nas paredes do vale.
Os tuu reuniram-se no topo do vale, olhando a névoa venenosa com o medo a causar-lhes espasmos nos opérculos.
Flor do Trovão, já inteiramente compenetrada da sua nova condição e do seu novo papel enquanto Aquela que Sai, passeou entre a multidão, deixando-se tocar, acalmando-a, dando-lhe alento. Exalava o cheiro mais doce que algum tuu tinha algum dia exalado, murmurava-se, e o seu povo deixou-se enfeitiçar por esse odor. E foi conduzido por ele que foi avançando devagar para o fundo do vale.
Nem todo, no entanto. Um pequeno grupo de tuu, talvez aqueles que nunca se tinham deixado convencer inteiramente de que Flor do Trovão era mesmo Aquela que Sai, ou os que não acreditavam por inteiro na realidade da profecia, foi-se deixando ficar para trás, e quando os primeiros pseudópodes da névoa tactearam os cascos da multidão, partiram de regresso às suas casas, confusos, desapontados e tristes.
Mas esses eram uma pequena minoria, e os outros foram avançando pela névoa dos miasmas adentro, seguindo uma Flor do Trovão que agora avançava em frente com resolução. Fosse por causa dos movimentos de ida e vinda normais da névoa que, por coincidência, acompanhavam os movimentos de Flor do Trovão, fosse porque Aquela que Sai tinha realmente o poder de controlar a névoa, como pretendiam algumas intepretações mais literais da profecia, o certo é que os farrapos brancos do veneno se iam retirando quase tão depressa como Flor do Trovão por eles avançava.
Ao ver aquilo, a multidão encheu-se de alegria e todas as dúvidas que, apesar de tudo, ainda permaneciam em muitos espíritos, dissiparam-se num mar de trinados. Em breve, apesar das pernas mais longas de Flor do Trovão, era esta que eram empurrada em frente pelo seu povo, mais do que liderava o seu avanço, também empurrada por um vento razoavelmente forte que soprava do topo do vale.
A névoa, entretanto, acumulava-se na frente dos tuu, alcantilando-se em contrafortes com uma altura considerável. Era como se uma montanha de vapores tivesse decidido rivalizar em altura com as montanhas de pedra que ladeavam o vale, apresentando o seu branco amarelado como arma contra o cinzento pintalgado de vermelho dos penhascos.
Até que o vento parou. Nesse momento, a névoa começou a desabar sobre Flor do Trovão e os seus companheiros, empurrando o ar para fora das covas respiratórias e arrancando da multidão um grasnido de susto.
Os mais pequenos, os mais magros, os mais fracos tombaram muito depressa. Depois, alguns já mortos, outros ainda vivos, foram espezinhados por uma multidão que num instante se esqueceu de toda a alegria e recuou em massa e em pânico, abandonando amigos e conhecidos, abandonando Flor do Trovão, que gritava, ainda convencida de ser capaz de ultrapassar a névoa, ainda imbuída da certeza de ser Aquela que Sai, tentando incutir aos outros uma confiança que ainda não começara a fugir-lhe.
Em vão. A debandada foi geral, deixando para trás os restos irreconhecíveis dos espezinhados, cadáveres de onde o sangue branco saía em golfadas.
Mas aquela fuga precipitada teve pelo menos o condão de poupar Flor do Trovão à visão completa do desastre. Um a um, dez a dez, cem a cem, todos os tuu caíram, sufocados, estrebuchando num chão onde espécies de ervas que não conheciam tentavam resistir aos seus movimentos descoordenados, até ficarem imóveis em posições contorcidas, e sempre, sempre, sempre, com as covas respiratórias abertas quase até à destruição dos esfíncteres. Flor do Trovão foi a última a cair, mas não viu isto, porque não chegou a fugir e porque a névoa se fechou à sua volta como um túmulo amarelado.
Só quando começou a perder o controlo dos esfíncteres compreendeu que a profecia não se iria realizar. E à medida que o corpo ia tomando conta dos seus reflexos, numa busca sem esperança por ar, empurrando a consiência para o interior mais profundo do seu cérebro, Flor do Trovão foi mudando a sua maneira de olhar para si própria até chegar, de novo, à incompreensão. Morreu à procura de resposta a uma pergunta que fizera a si própria muitas vezes no passado:
"Quem sou eu, afinal?"

quarta-feira, 19 de maio de 2004

Assassinos

Mas será possível ainda alguém ter dúvidas de que o governo e forças armadas israelitas não passam de um bando de assassinos? Que conseguem ser ainda piores que o Hamas?

Como funcionam pelo menos 95% dos políticos portugueses

Recebi hoje por email uma coisinha que gostaria de compartilhar convosco. É uma análise do comportamento daquela classe política cujo único estímulo e interesse é o poder, ou seja, aquela classe política que compõe pelo menos 95% da classe política portuguesa.

Então, antes das eleições fala-se assim:

O nosso partido cumpre o que promete.
Só os néscios podem crer que
Não lutaremos contra a corrupção.
Porque, se há algo certo para nós, é que
A honestidade e a transparência são fundamentais.
Para alcançar os nossos ideais
Mostraremos que é grande estupidez crer que
As máfias continuarão no governo, como sempre.
Asseguramos sem dúvida que
A justiça social será o alvo da nossa acção.
Apesar disso, há idiotas que imaginam que
Se possa governar com as raposas da velha política.
Quando assumirmos o poder, faremos tudo para que
Se termine com os marajás e as negociatas.
Não permitiremos de nenhum modo que
As nossas crianças morram de fome.
Cumpriremos os nossos propósitos mesmo que
Os recursos económicos do país se esgotem.
Exerceremos o poder até que
Compreendam que somos a nova política.


Agora, para saberem como é a prática depois do partido ganhar as eleições, repitam a leitura de baixo para cima (linha a linha).

terça-feira, 18 de maio de 2004

Quem estiver mais de um mês sem dar notícias, leva com um †

Já repararam nas alterações feitas à lista de links? Vou tentar que a partir de agora esteja em permanente actualização. E quem estiver mais de um mês sem dar notícias leva com uma sinalefa bem expressiva em cima. Ouviram? Depois não digam que eu não avisei.

<-------- Os livros que estão ali

Desde Fevereiro que não vos falo de livros. O motivo? Passei uns meses quase em reclusão literária, a fazer vida de povão, gastando (muito) mais tempo a ver televisão do que a ler. Mas não aguanto tal coisa por muito tempo, e, de há algum tempo para cá, tenho voltado à letra impressa, de modo que há renovação ali na lista ao lado. E voltará a haver muito em breve, que o Evangelisti está mesmo no fim, e o que se segue é muito curtinho. Mas não nos adiantemos.

Desde Fevereiro, li A Teia, de João Aniceto (provavelmente o melhor romance deste autor, o que não significa que seja um bom romance) e duas antologias: os Contos Polacos (um livro irregular numa edição com muito mais gralhas do que é admissível, mas com uns quantos contos muito bons) e Pecar a Sete (demasiados contos muito maus para valer a pena, apesar de também lá haver contos muito bons) e, para substituí-los, entraram:

- Homens-Aranhas, de Rui Zink, é uma colectânea de contos (e uma banda desenhada) que andam muito em volta daquilo a que há quem chame "cultura popular" e que foi publicada em 2001. Edição do Círculo de Leitores (2001), 171 páginas.
- O Romance de Nostradamus — O Engano, de Valerio Evangelisti, é a continuação desta trilogia fantástica sobre a vida do "fazedor de profecias em verso" francês. Edição da Editorial Presença (2002), 334 páginas.
- O Dia em que o Mar Desapareceu, de José Carlos Barros, é o 2º prémio de conto da edição de 2002 do Prémio Revelação Manuel Teixeira Gomes. Edição das Edições Colibri e da Câmara Municipal de Portimão (2003), 30 páginas.

Uma spam fiction parente do Roger Rabbitt

Não é a melhor maneira de arrancar com isto, mas é a maneira possível. Tenho andado nos últimos dias em guerra aberta com o conto que estou a escrever. Eu quero mantê-lo abaixo das duas mil palavras, mas ele, aos berros, exige pelo menos quatro mil. Pelo menos, grita ele, deixando-me a cabeça em água.

Só me lembro daquela cena do filme Quem Tramou Roger Rabbit, em que o Bob Hoskins tenta por todos os meios, mas sem grande sucesso, manter o raio do coelho escondido na gabardina.

Lá terei de desistir e fazer a vontade ao bicho, pois então. Contem com mais alguns dias até que ele apareça por aqui, e que quando aparecer não seja, propriamente, o tipo de leitura rápida que seria de esperar de um blogue.

Seja como for, o total de 53 contos é para manter.

Anúncio Importante

A Trilha regressou. Passem por lá.

domingo, 16 de maio de 2004

150 mil provas

150 mil cidadãos israelitas, com alguns palestinianos à mistura, manifestaram-se ontem contra a política assassina de Sharon e do resto da extrema-direita israelita. São 150 mil provas. De quê, exactamente, é que já depende do ponto de vista.

Segundo a esquerda, de que o anti-semitismo é uma aberração.

Segundo a extrema-direita, mesmo a que se tenta fazer passar por democrática, de que há pelo menos 150 mil judeus anti-semitas.

Spamesia em papel

Já anda por aí à venda há cerca de um mês o número 8 da revista Em Cena. Só vos digo agora porque só agora arranjei uma imagem da capa para que vocês saibam o que é quando a virem.

Uma das atracções menores que transporta é o primeiro spamema que saiu deste blog e foi publicado em papel, se bem que expurgado do seu título (Crescimento). Não tem nada que enganar: página 96, acompanhado por uma magnífica ilustração de José Carlos Fernandes na página 97.

Outra das atracções menores que transporta é um pequeno conto em jeito de fábula, chamado O Escritor Contentinho e o Sapo. Anda pela página 48, intercalado por ilustrações também óptimas de Hugo Miguel.

Quanto a atracções maiores, refiro só as literárias: Paula Bravo, Yoannan, Fernando Cabrita, Dr. Sibelius, Luiza Neto Jorge, Kraiene, Helder Neves, Clara Andrade, José Alberto Quaresma, Fernando Gregório, Sandro William Junqueira, Maria João Cantinho, Isa Catarina Mateus, Baltasar Henriques, Paulo Rodrigues, Miguel Murta, Paulo Cunha, Pedro Paixão e Vítor Reia.

quarta-feira, 12 de maio de 2004

A Lâmpada Mágica apresenta...

Há dias, houve aqui na Lâmpada um post sobre fast fiction. Por outro lado, já toda a gente terá ouvido falar de pulp fiction. Também existe a science fiction e uma coisa chamada flash fiction.

Por outro lado, há a spamesia.

Pois, meus caros, a partir de agora, passa a haver a

spam fiction


E quais são as regras do jogo?

São semelhantes, mas não iguais, à spamesia. Tal como na spamesia, a origem da spam fiction é o spam. Tal como na spamesia, também a spam fiction pretende ser conteúdo regular aqui na Lâmpada. Tal como na spamesia, também o resultado da spam fiction, publicado na Lâmpada, deve ser considerado não mais que um esboço de qualquer coisa que, na maior parte dos casos, irá exigir mais trabalho para ser obra. Mas as semelhanças acabam aqui. Há a diferença óbvia de a spam fiction não ser poesia mas sim ficção, mas há mais: ao contrário da spamesia, a spam fiction terá, em princípio, uma periodicidade semanal. Ao contrário da spamesia, a spam fiction tem objectivo traçado à partida: um livro de contos a ficar pronto (pronto para ser retrabalhado, entenda-se) ao fim de um ano, o que implica 53 contos e tem como consequência que eles não poderão ser muito grandes (com cerca de 2000 palavras de tamanho médio, o livro resultante terá à volta de 300 páginas, o que já é um belo livro). Ao contrário da spamesia, que obrigava a que o título do spam fosse o título do spamema, a spam fiction pode ser inspirada por qualquer das características do spam, e o título é consequência do resultado e não do spam propriamente dito. E ao contrário da spamesia, a spam fiction terá, quando eu achar necessário, posts "anexos" em que explicarei alguns conceitos a "não iniciados", uma espécie de mini-guias de leitura.

Novidade? Nem por isso. Este tipo de séries de ficção online tem um percursor de grande nível: o Michael Swanwick, com os seus contos da tabela periódica. Antes de arrancar a spamesia, pensei em fazer qualquer coisa do género, mas achei que não tinha estaleca para fazer ficção tão regularmente e desisti. Entretanto, o Gabriel Bozano meteu-se num projecto semelhante (que parece que parou entretanto — pelo menos não há nada online no site dele), e eu, há cerca de dois meses, resolvi que depois da spamesia iria mesmo tentar uma coisa deste género. Entretanto, o Luís Filipe Silva teve uma ideia parecida, mas que parece ter engasgado logo no arranque.

Quanto a mim, vamos a ver que tal me saio. O balanço é daqui a um ano.

Quantos?

Ena, ena... e o contador de chegadas, ali em baixo, já chegou às trinta mil!... :)

Estão bem uns para os outros

Uns torturam, violam e espancam prisioneiros até à morte, registando tudo em fotografia, os outros degolam reféns sob o olhar imparcial de uma câmara de vídeo.

Decididamente: americanos e Al Qaeda estão bem uns para os outros.

A Lâmpada Mágica Apresenta...

... brevemente...

domingo, 9 de maio de 2004

Spam do além

O spam é porreiro. Acabei de dar uma vista de olhos pelo folder de junk e descobri que há horas recebi um spam do... Elvis Presley.

He lives!

Fast Fiction? Not for me!

OK, agora que já viram o que saiu da minha tentativa de seguir o "método" da senhora Roberta Allen para escrever ficção em cinco minutos, aqui ficam as minhas impressões da experiência e do conceito. Diz ela que o método origina escrita "espontânea" que ao ultrapassar o "crítico interior" permite à "nossa voz" uma expressão mais completa e o surgimento de "imagens e associações surpreendentes". Que assim a escrita se torna "menos intimidante" e mais poderosa e precisa.

Bem, devo dizer que gosto muito do meu inner critic, thank you very much. É ele que me diz quando a associação surpeendente que me aparece ao correr da pena resulta e quando não resulta. È ele que me diz que uma frase, um parágrafo ou uma história inteira não presta e que há que procurar a voz certa num sítio mais profundo. É ele que me diz "isto tá porreiro, fica", ou "isto tá uma bosta, lixo". É ele que muitas vezes me faz parar, perguntando-me "mas afinal que queres tu dizer com isto?" É ele, enfim, que, ao fim da segunda, terceira, quarta, quinta revisão me diz que uma história está finalmente legível e que se pode tentar publicá-la.

Eu sei que há muita gente que acha que escrever é deixar-se ir, deixar-se levar pelo inconsciente e desnudar a alma, seja isso o que for. Não é. Pelo menos para mim não é. O acto de escrever é um acto pensado e, de preferência, inteligente, em que a comunicação é mais importante que a expressão, e em que a alma, que acaba sempre, de qualquer maneira, por se desnudar um pouco sozinha, fica, mesmo assim tapada. Até porque não há nada mais sedutor do que um corpo mais sugerido do que revelado e o binómio escrita/leitura é, acima de tudo, um acto de sedução.

Ora, em escrita semi-automática, que é o que a srª Allen propõe, não há grande espaço para algo mais do que expressão. Ou então para o aparecimento de coisitas fúteis e descartáveis, capazes de entreter durante menos de um minuto e pouco mais. Isso não é "voz" interior: é apenas pele e um pouco de cosmética a tapar algumas rugas.

Ou seja: fast fiction (e não me refiro à que é lida depressa mas sim a esta, a que é feita depressa) é assim como a fast food da ficção: insípida e não muito boa para a saúde. Prefiro a minha comida lenta. E a ficção também.

Quanto aos cinco medíocres continhos que saíram daquilo, ficam como ideias em bruto. Talvez — é pouco provável mas não impossível — os transforme em slow fiction, de muito maior qualidade, mais tarde. Se isso acontecer, já serviram para alguma coisa.

A promessa do futuro

O Luís N volta e meia lança desafios (é o último). O último foi escrever um conto em 5 minutos sobre um de cinco temas à escolha (finalmente). Eu escolhi a promessa quebrada e o conto é este:


— Prometo — gritava o político, em plena campanha eleitoral, agitando os braços como se só assim conseguisse agitar as massas — que o futuro será amanhã!
As massas, apesar de relativamente agitadas, ficaram na expectativa. Amanhã era muito cedo. Seria que o político iria conseguir cumprir a promessa? E se a quebrasse? Ná. Melhor ficar céptico, sem acreditar totalmente, mas também sem descrer por completo porque... enfim... sempre podia ser que... enfim...
O político acabou eleito. As massas esperavam ainda, mas já menos agitadas, pois com o ritual de colocar um papel numa caixa acabava a sua participação nas coisas. Se o futuro iria ou não ser amanhã, ficaria apenas a cargo do político.
Passou-se tempo, o amanhã chegou. É hoje.
E do futuro nem sinal. Só houve mesmo direito ao presente.
Vá-se lá acreditar nos políticos, resmungam as massas, entredentes.

sábado, 8 de maio de 2004

22 dicas sobre como ser um homem(1) às direitas

1 - Ser-se viciado em drogas é uma falha moral e um crime, excepto se se for um empresário milionário e conservador, caso em que passa a ser uma doença que necessita das preces dos crentes para uma boa recuperação.
2 - É preciso acreditar que os privilegiados de nascença alcançam sucesso graças ao seu próprio trabalho.
3 - É preciso achar que as Nações Unidas não servem para nada, e que a maior prioridade nacional de qualquer estado é ajudar os EUA a conseguir aprovar na ONU as suas resoluções relativamente ao Iraque.
4 - É preciso acreditar que o governo não se deve meter na vida das pessoas, excepto para punir aqueles que são apanhados a praticar sexo privado com o sexo "errado".
5 - É preciso acreditar que a poluição não faz mal, desde que gere lucros.
6 - É preciso defender que se reze nas escolas, desde que não se reze a Alá, a Buda ou a Krishna.
7 - "Defender o Seu País" significa despedir os seus trabalhadores e transferir os seus empregos para a Índia.
8 - É preciso acreditar que a uma mulher não pode ser confiada a tomada de decisões acerca do seu próprio corpo, mas que as grandes corporações multinacionais podem tomar decisões que afectam a humanidade inteira sem terem de obedecer a qualquer tipo de regulação.
9 - Tem de acreditar que ama Jesus e que Jesus o ama e compartilha o seu ódio pelas vítimas da sida, pelos homossexuais e pelo Louçã.
10 - Tem de odiar os advogados que representam os acusados, desde que não se trate de Valentim Loureiro ou de Isaltino Morais.
11 - Tem de acreditar que a melhor maneira de encorajar os militares é louvar os seus esforços no exterior, com material pedido emprestado aos outros países, enquanto se compra submarinos.
12 - É preciso acreditar que o sexo em grupo e o uso de droga são pecados degenerados, que só podem ser expurgados votando no Alberto João Jardim.
13 - É preciso acreditar que é boa ideia manter os preservativos longe das escolas, porque todos sabemos que se os adolescentes não tiverem preservativos, não terão relações sexuais.
14 - É preciso acreditar que a melhor maneira de combater o terrorismo é desrespeitar os aliados e depois exigir-lhes cooperação e dinheiro.
15 - Tem de acreditar que a medicina estatal é errada, e que os hospitais privados e as companhias que vendem seguros de saúde só têm em atenção os seus melhores interesses de cliente.
16 - Tem de acreditar que fornecer cuidados médicos a todos os iraquianos é uma política governamental sábia, mas fornecê-lo a todos os americanos é o socialismo personificado (ou seja, o Mal).
17 - Tem de acreditar que a ligação do tabaco ao cancro e ao aquecimento global são pseudociência, mas que o criacionismo devia ser ensinado nas escolas.
18 - Tem de acreditar que fazer uma guerra sem uma estratégia de saída era errado no Vietname, mas certo no Iraque.
19 - Tem de acreditar que Saddam era um dos bons quando Reagan o armou, um dos maus quando o pai de Bush fez guerra com ele, um dos bons quando Cheney tinha negócios com ele e um dos maus quando Bush precisou de uma diversão porque não conseguia encontrar Bin Laden.
20 - Tem de acreditar que o governo se deve restringir a menos poderes do que os que tem segundo a constituição, mas que os que deve manter incluem a pribição de casamentos entre homossexuais e a censura da internet.
21 - Tem de acreditar que o país tem o direito de saber sobre as escutas telefónicas feitas a dirigentes do PS, mas que os telefonemas dos dirigentes do PSD são matéria privada.
22 - Tem de acreditar que fazer comércio com Cuba é errado, porque o regime é comunista, mas fazê-lo com a China e o Vietname é sinal de modernidade.

(1) - ... ou, vá lá, mulher. Maricas é que não pode ser.

As armas de destruição maciça

O Luís N volta e meia lança desafios (estão a achar isto monótono, não estão?). O último foi escrever um conto em 5 minutos sobre um de cinco temas à escolha (só falta um, descansem). Eu escolhi a mentira e o conto é este:


— Onde estão as minhas armas de destruição maciça? — perguntou Zorg, do topo do seu trono gigantesco, fazendo ribombar a sua voz de doninha que arrancava ecos agudos das colunas do palácio.
— Perdão, ó Majestade Impiedosa, Luz de Mil Sóis, mas ainda não conseguimos encontrá-las — respondeu um temeroso funcionário, nariz assente sobre o chão de granito, falando para um microfone embutido nesse mesmo chão.
— EU QUERO AS MINHAS ARMAS DE DESTRUIÇÃO MACIÇA! — berrou Zorg, de novo do topo do seu trono gigantesco, etc., blá blá blá.
Desta vez, o funcionário ficou calado. Nas histórias com grandes vilões, não convém provocar-lhes a ira, caso contrário pode acabar-se com uma bandeja interposta entre a cabeça e o resto do corpo.
— Eunuco! — falou de novo Zorg, desta feita com voz mais suave, quase carinhosa — Vai buscar uma bandeja.
O funcionário estremeceu, e decidiu nesse mesmo instante mentir:
— Majestade Impiedosa, Luz de Mil Sóis de Aquém e de Além Mar, tenho informações recentes, que não queríamos fornecer-vos porque não são inteiramente certas, de que as vossas armas de destruição maciça se encontram escondidas numa gruta nas montanhas de... — e continuou durante mais um bom bocado, dando graças aos genes que lhe haviam dado uma imaginação de aquecimento rápido, desde que para isso houvesse o estímulo adequado.
E assim nasceu um mito, perpetuado no Império ao longo das eras.

sexta-feira, 7 de maio de 2004

Joselito

O Luís N volta e meia lança desafios. O último foi escrever um conto em 5 minutos sobre um de cinco temas à escolha. Eu escolhi o lagarto e o conto é este:


Joselito era um lagarto. Mas não era daqueles lagartos verdes do cliché. Não. Joselito era um lagarto psicadélico, com uma pele que parecia coberta com uma dose valente de LSD, cheia de pintinhas de milhares de tons de vermelho, verde, azul e púrpura, muito púrpura.
Se alguém o visse, pensaria talvez que tinha sido pintado por um pintor com um sentido de humor cruel. Mas a realidade era que Joselito tinha nascido assim, já pintalgado, e assim tinha vivido de lagartito comedor de baratas ao pujante lagartão em que se tinha tornado, devorador de pássaros, ratos e pequenas cobras.
Joselito, como não pensava, propriamente — os animais irracionais, ao que parece, não pensam — não se preocupava com a sua diferença e muito menos com as suas origens. Preocupava-se apenas com a próxima refeição e, de vez em quando, e vagamente, com a possibilidade de se enroscar em torno de uma fêmea. Ainda bem para ele, porque se se preocupasse com os esotéricos assuntos da sua origem e natureza, provavelmente seria infeliz.
Quem gostaria de saber ser filho de um ovo de páscoa?

Mais FC no Blog de Esquerda

O Luis Rainha voltou a escrever uma ficção científica divertida no Blog de Esquerda. Não recomendável a quem for desprovido de um sentido de humor. Também não recomendável a quem procurar acima de tudo a verosimilhança. Barnacaldas... hehehehe...

Uma questãozita ortográfica

Pergunta-me retoricamente o Boemius, nos comentários do post abaixo, se este post não estará umbilicalmente ligado a um dos "fast fictions" que ainda não saíram da caixa de comentários do Ene Coisas para aqui. E eu, em vez de lhe responder nos comentários, respondo aqui.

Direitinho, Boemius, direitinho. Em particular porque parte dos 6 minutos foi gasta em dúvidas sobre como se escreveria o raio da palavra, se "maciço", se "massiço". Acabei por decidir que, dado que a sua origem etimológica está na palavra latina para "massa", devia ser "massiço", ainda que me soasse um bocado estranho. Enganei-me. É daquelas esquisitices da ortografia portuguesa em que os ss passam a c sem grande motivo para isso.

Enfim, mas não será por isso que há a iliteracia que há em Portugal (e mais ainda no Brasil e etc.): a ortografia francesa ainda é mais bizarra e ilógica que a nossa, e não é por isso que a França é um país de analfabetos como Portugal é. Em todo o caso, que uma simplificação ortográfica era muitíssimo desejável, lá isso era.

quinta-feira, 6 de maio de 2004

Uma pergunta e uma resposta provável

P. Sabem porque é que tanta gente resolveu de repente começar a falar em armas de destruição massiva?

R. Porque não sabem se maciça se escreve "massiça", "massissa", "macissa" ou "maciça".

Resmungo redondo que rola

O Luís N volta e meia lança desafios. O último foi escrever um conto em 5 minutos sobre um de cinco temas à escolha. Eu escolhi o objecto que esteja perdido e o conto é este:


Ah, não, não, não, não me hão-de encontrar. Nem que para evitar as garras destes tipos grandes e compridos tenha de me meter pelas fendas da calçada abaixo, por um algeroz, por uma corrente fria de água da chuva. Não. Estou farta de ser manuseada, de passar de mão em mão, de saltitar quando um palerma qualquer me põe a girar em cima de uma mesa de plástico a imitar mármore e fica a olhar para mim, de sorriso parvo estampado na cara. Farta. Fartinha, fartíssimíssima. Chiu. Vem ali um.
...
Como ia dizendo, ah, não, não me hão-de encontrar. Gostava de estar caída em terra para cobrir-me de folhas e não ter o sol aqui por cima a fazer-me brilhar. Metal. Ser metal é uma chatice, e ser redonda mais chatice ainda é, excepto quando me deixo cair e me ponho a rodar, rodar, rodar, para fora do alcance da mãos banhadas em ganância gordurosa. Ah, as mãos gordurosas! Que nojo! Que asco! Que porcaria de vida, esta de ser moeda. Mas chiu. Ali vem outro.
...

quarta-feira, 5 de maio de 2004

Tosse

O Luís N volta e meia lança desafios. O último foi escrever um conto em 5 minutos sobre um de cinco temas à escolha. Eu escolhi a tosse e o conto é este:


— Olhe, amigo (cofff), quando esta tosse me apareceu (coff coffff cofffff)... desculpe (cofff cofff cofff)... ah, raisparta! Onde ia eu? Ah, sim (Ahum). Quando esta tosse me apareceu, vinha de regresso (cofff...) de regresso do Monte das Cascas de Ovo.
— Monte das Cascas de Ovo?!
— Sim (cofff cofff cofff)... ai... às vezes faz até (cofff) até doer o peito, sabe? (Cofff cofff coff cofff) O Monte (coff ahum) das Cascas de Ovo fica a sul da colónia principal de Nova Terra Nova, numa região (cofff cofff) rodeada de (cofff cofff cofff) pântanos.
— Ah...
— Estive (Coffff)... estive dois anos de quarentena até que as autoridades (cofff cofff coffffff coff coff cofff)... bolas... (coff coffff cofff aaaah...) as autoridades médicas decidiram que posso não ter cura mas pelo menos não sou (cofff cofff) contagioso.
— Mas isso é certo?
— Quase (cofff coff). Quase certo. Parece que há uma (cofff cofff cofff coffff cooofffff) possibilidade pequena de (cofff coff cofff ahhum).. de contágio, e (cofff coffff)... mas onde vai? Amigo? Não vá... (Cofff coffff coffff coffff coffff cofff coff)

Fim

Pois é, meus amigos, a spamesia começou a 5 de Maio de 2003, e é a 5 de Maio de 2004 que chega ao fim. Foi um ano nisto, um ano que teve como resultado 366 textos, certamente que muitos muito maus mas talvez com alguns razoáveis lá escondidos no meio. Tudo somado, foram à volta de 28 mil palavras que aqui ficaram na Lâmpada à espera de quem as queira ler.

Foi uma viagem interessante, mas tenho de confessar que também foi desgastante. Há já um par de meses que estou saturado, e só continuei com isto por pura teimosia de chegar ao ano. Aliás, acho que se deve ter notado. Eu não percebo nada disto, e por isso a minha opinião vale o que vale, pouca coisa, mas a verdade é que gosto menos do que tenho escrito recentemente do que de muito do que ficou para trás.

E é assim que o mundo gira: encara o sol sempre igual e diferente todos os dias. A Lâmpada continua. Diferente.

Spamesia (366)

O Conselho da Revolução declara: Vencemos! O grosso dos fascistas fugiu, e os poucos que vão aparecendo vão sendo enxotados rapidamente por um povo atento. Declaramos, portanto, o fim do período de vigilância. A Revolução triunfou, e pela última vez fomos ao arquivo morto, de onde trouxemos: "Message subject"

Tema de mensagem

O último tema da última mensagem
a atravessar o espaço e o tempo
e a chegar ao fim da sua viagem
dizia que «cada mensagem tem o seu tema
mas nem todos os temas têm mensagem»

terça-feira, 4 de maio de 2004

Spamesia (365)

E ontem, o grupo expedicionário regressou com "lacunae"

Lacunas

Por vezes quero recordar um rosto antigo
e não consigo — há qualquer coisa que falta
lacunas, lugares vazios na imagem, bocados
de branco (ou, o que é mais frequente, de
negro), desaparecimentos. Então, imagino
o meu cérebro como queijo suíço, e um
ratinho diligente roendo, roendo sempre
com um relógio no pulso da pata direita

Spamesia (364)

A sortida de anteontem trouxe outro título: "Re: Your picture"

A tua fotografia

Se quiser saber coisas de ti
de nada me serve olhar
para a tua fotografia
pois o que ela me diz é só
que não estás aqui

Spamesia (363)

No dia antes de anteontem, mais uma sortida ao arquivo morto, mais um título resgatado. Desta feita, o azar bateu à porta de "Boing... (the sound produced by a little pill)"

Boing (o som que faz uma pequena pílula)

Boing (o som que faz uma pequena pílula)
Tunf (o som que faz uma mão a bater num peito)
Keee (o som que faz uma garganta em busca de ar)
Tuf (o som que faz um par de pulmões tentanto tossir)
Blém (o som que faz o pânico)
Tlim (o som que faz um corpo a perder as forças)
Brumblum (o som que faz um corpo a cair no chão)
Tktwktrmmm (o som que faz um corpo a estrebuchar)
............ (o som que faz a morte)

domingo, 2 de maio de 2004

Spamesia (362)

Quase a terminar o período de vigilância, um fascista retardatário ou outro ergue a cabeça, aqui e ali, e é prontamente expulso para o arquivo morto. E foi a este que fui buscar, anteontem, o título de "Re: Your music"

A tua música

A tua música não tem sons
é feita de sedas e gestos de aragens
e enche-me a vida de acordes
de sétima, sexta e silêncio
onde me lavo, expulsando da pele
o solidó da monotonia quotidiana

Ah, quem me dera um dia poder
banhar-me nas tuas oitavas
e nadar ao compasso do teu vibrato!

E ao fundo, uma flauta desenha o horizonte

sábado, 1 de maio de 2004

Spamesia (361)

Sim, meus amigos, a revolução parece que venceu mesmo, porque continua sem haver o mínimo sinal dos fascistas. Continuaremos atentos mais uns dias, mas por enqaunto tudo parece estar bem. Do arquivo morto, e cada vez mais morto, "air"

Ar

Do ar, a mais
fundamental
das naturezas
é que dele
caem coisas
zumbindo
pelo ar