O Centésimo em Roma é um romance histórico de Max Mallmann passado, como é fácil perceber, na antiga Roma. Mas a antiga Roma foi um sítio vasto, tanto territorial como temporalmente, portanto é necessário dizer mais alguma coisa para situar o romance. O tempo é o século I depois de Cristo, embora na época ainda não se contasse o tempo assim. Nero incendiara a cidade não muito tempo antes, e as ondas de choque da sua liderança ainda se sentem, altaneiras e espumejantes. O lugar, esse, é Roma, a própria Cidade Eterna, onde o cristianismo vai alastrando clandestinamente, ao mesmo tempo que se sucedem imperadores cada um mais enlouquecido que o outro e tropas romanas, apoiantes de imperadores alternativos, ameaçam marchar contra a capital do império.
No meio de toda esta conturbação surge-nos Desiderius Dolens, o principal protagonista. Um cínico contraditório, que ora se mostra um brutamontes sanguinário, ora um amigo verdadeiro. Um plebeu, nado e criado num dos bairros pobres de Roma, movido por uma ambição de toda a vida: a de sair de lá. Um soldado das legiões com fama de ter massacrado uma aldeia inteira de germanos (o que lhe deu um cognome que tolera a contragosto, por motivos que aos poucos se vão compreendendo) e que volta para Roma casado com uma germana. Que ama, embora continue a fazer visitas a prostitutas. Um homem que tenta a todo o custo manter-se são no meio da loucura dos tempos, em boa medida porque é filho de pai louco. Um homem que é centurião de uma espécie de corpo policial romano, mas que verdadeiramente desejava ser cavaleiro.
É como se os tempos conturbados tivessem o seu reflexo na vida conturbada do protagonista e das vidas com que se cruza. A família, os camaradas de armas, os nobres e os senadores a cujo grupo sonha vir um dia a pertencer. Uma galeria de personagens com mais cómico que trágico, embora várias sejam as que se mostram bastante palpáveis, com bastante mais que a mera superfície típica das personagens secundárias e/ou humorísticas.
O livro é francamente bom. Divertido, quase sempre, por vezes algo comovente, está estruturado como um relato duplo dos tempos e dos acontecimentos. Mallmann afirma basear a história de Dolens num relato contemporâneo dos factos, que teria chegado até hoje, chamado Vita Dolentis (A Vida de Dolens, na última flor do Lácio), e escrito por um tal Quintus Trebellius Nepos. Obviamente, nem este nem aquele são verdadeiros, o que não impede o autor de intercalar fragmentos do texto de Nepos na sua interpretação ficcional dos acontecimentos neles descritos. Nepos, ao mesmo tempo cronista e personagem, é um filho de família nobre de Roma, letrado e coxo e por esses motivos relegado a subalterno de Dolens, com quem tem uma relação algo atribulada, especialmente a partir do momento em que alguém lhe mata o pai e ele fica obcecado com a descoberta do ou dos assassinos, o que tem consequências nefastas não só para si próprio (provavelmente terá acabado por gostar do serviço de limpeza às latrinas, tantas foram as vezes que lá foi parar) como para Desiderius Dolens, que por causa disso acaba por ter a surpresa da sua vida. Francamente desagradável.
O livro, já disse?, é francamente bom. Carregado de ironia, cheio de paralelismos não muito bem camuflados entre as realidades políticas romanas e as contemporâneas e até com uma hilariante partidinha de (uma espécie de) futebol à mistura, ou não fosse o autor brasileiro, bem pesquisado e por isso credível enquanto recriação histórica (pese embora alguns anacronismos), bem escrito, com um sem-fim de capítulos muito curtos que, não raro, nem a uma página chegam, o que contribui para uma leitura quase saltitona de tão ágil, este foi dos melhores livros que li no ano passado... depois de ficar quase três anos à espera de vez aqui nas minhas pilhas centenárias. Depois de o ler, tive pena de o ter feito esperar tanto.
Este livro foi-me oferecido pelo autor.
Salve, Candeias!
ResponderEliminarQue bom saber que você gostou dos meus romanos.