quinta-feira, 8 de abril de 2021

Lewis Carroll: Alice no País das Maravilhas

Não sei se isto acontece a muita gente, embora saiba que quando se pergunta "serei só eu que" quase nunca se é, mas o facto é que senti durante anos e anos uma enorme resistência a ler livros ou contos de que tinha visto ou lido adaptações em miúdo. Não sei bem porquê. Talvez o receio de destruir com essa leitura memórias de infância, talvez a ideia de que há coisas que se não forem lidas na idade certa perdem a magia e por consequência o encanto, talvez, simplesmente, não ter calhado ou então ter andado demasiado absorvido por outras leituras para regressar a essas histórias. Talvez uma combinação de todas ou algumas estas coisas e de outras tantas. Seja qual for o motivo, o facto não muda: há obras literárias que nunca li simplesmente por ter visto adaptações delas para cinema ou TV ou por as ter lido adaptadas para BD. Ou até resumidas em conto infantil.

Ultimamente tenho vindo, devagarinho, a remediar essa situação. Foi o que me levou, por exemplo, a comprar os Contos de Grimm, que tenho vindo a ler nos últimos meses. E foi também o que me levou a comprar este Alice no País das Maravilhas (bibliografia), que também nunca tinha lido, apesar de conhecer razoavelmente bem a história através de várias adaptações (e uso o advérbio porque as adaptações tendem a desviar-se dos originais em maior ou menor grau, dependendo daquilo que mais interessa neles a quem as faz).

O problema destas leituras, claro, é chegarem a destempo. O leitor de hoje não é o leitor que seria se as tivesse feito no tempo próprio, e estas histórias infantis já são olhadas com o olhar experimentado e demasiado cínico do adulto, não com a ingenuidade da criança. Há nisso uma vantagem e várias desvantagens. As desvantagens são óbvias, parece-me, pelo que me dispenso de as elencar. A vantagem é o adulto que lê estar mais equipado para compreender as motivações do adulto que escreve e por isso conseguir encontrar nestes textos significados que a criança nunca captaria. Ainda que isso por vezes cause também algum incómodo.

A criança, ao ler esta novela de Lewis Carroll (ou ao ler ou assistir a alguma das suas adaptações), deixa-se simplesmente deslumbrar pela imaginação delirante e absorver pela história. O adulto, por seu lado, diverte-se com a crítica implícita aos desmandos e à crueldade dos poderosos ou ao ridículo (e ineficaz) cerimonial dos tribunais, especialmente dos britânicos. A criança nada encontra de estranho na própria Alice; já o adulto, sabendo que a Alice do livro é homenagem a uma Alice verdadeira, de carne e osso e da mesma idade, com quem o autor conviveu demoradamente... bem... falo acima de incómodo, não é? Pois.

Curioso é que a criança tenha retido na memória sobretudo a cena do chá com todas aquelas personagens estrambólicas, Chapeleiro Louco e companhia, a que se soma o Gato de Cheshire de outras cenas, e o adulto, ao ler o livro, tenha descoberto que essas cenas e personagens pouca importância acabam por ter. De facto, a maior parte da novela tem por base a Rainha de Copas e a sua permanente injustiça sanguinária, numa sucessão de cenas a que a criança pouca importândia deu. Talvez por falta de interesse próprio, talvez pela pouca atenção que lhes terá sido dada pelas adaptações a que a criança teve acesso. O adulto não sabe; já não se lembra. Passaram-se muitos anos.

O tom, no entanto, é aquele de que o adulto se lembra dos tempos de criança. A imaginação fervilhante, como que movida a mescalina, e as personagens excêntricas e antropomorfizadas, à boa maneira das fábulas, são as mesmas, e a história, pesem embora os diferentes pesos dados a este ou aquele episódio, também é. A camada de crítica social é nova mas só porque a criança não se apercebeu dela; o que é a redução de toda a hierarquia a um baralho de cartas falantes se não crítica social? Carroll, provavelmente, tê-la-á concebido apenas como uma crítica aos absurdos do mundo dos adultos, a que Alice por ser criança é alheia, mas o olhar desta acaba por funcionar como visão externa sobre uma sociedade cheia de defeitos, de uma forma muito semelhante ao de Gulliver nas andanças descritas por Swift. De resto, toda a forma de caracterizar a sociedade através do exagero e do absurdo é bastante semelhante em Swift e em Carroll, e isto é mais uma coisa que o adulto não esperava.

E de vez em quando, o adulto deixou-se divertir. Não tanto como gostaria mas mais do que temia. Sendo certo que a idade certa para o ler não é aquela em que o li, não é menos certo que há bons motivos para este livro ser o clássico que é. É um bom livro.

Este livro foi comprado.

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