Lá anda o Mia Couto a trocar-me as voltas. Depois de crónicas que são mais contos que crónicas e de crónicas que são mesmo crónicas e até de crónicas mais ou menos ficcionadas, crónicas com cheiro a conto, eis que me atira para cima com uma crónica com conto dentro. A qual até pode ser simplesmente um conto escrito em tom de crónica.
Confusos? Também eu.
Mas vou tentar explicar. O Secreto Namoro de Deolinda é basicamente uma crónica política, cujo tema principal é uma crítica àqueles ideólogos que tendem a projetar a ideologia mais além do que seria aconselhável ou meramente lógico. Mais concretamente, é sobre alguém que teria criticado Mia Couto por as suas crónicas serem escassas de acutilância contra a burguesia. Moçambique, anos 80: estavam na moda os alardes de marxismo. E é contra esses alardes que Couto se atira, com a sua típica fina ironia. Mas lá pelo meio, para vincar melhor o seu ponto, conta uma história: a história de Deolinda que foi parar ao título.
Deolinda — reza a história —, operária fabril, aparece um dia em casa com um crachá de propaganda que mostra a efígie de Karl Marx, o próprio. O pai é que não acha graça nenhuma: sem saber de quem se trata, desconfia da filha, julgando-a enrolada com o "cooperante" cuja foto traz ao peito. A tal ponto a enferniza que ela se imagina realmente enamorada do velho judeu prussiano das longas barbas e passa a namorar com ele às escondidas, por mais imaginário que seja o namoro. A ironia final é este deixar de ser imaginário e o "Marx" da vida real ser em tudo diferente do que inspirou o crachá.
A opinião de Mia Couto fica clara para quem a saiba ler nas entrelinhas, o que no fundo é o objetivo de qualquer crónica. E o texto, tão bem escrito como sempre, tem o interesse acrescido de também ser de certa forma um texto de ficção. Pouco mais podemos pedir, não é verdade?
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