domingo, 10 de abril de 2022

Luiz Bras: A Última Árvore

Uma das coisas que por vezes se dizem, e que até fazem algum sentido, de vez em quando, é que a ficção científica é uma linguagem universal. Especialmente a hard, mas não só. Porque lida mais com o mundo físico e as suas características e possibilidades do que a generalidade das outras literaturas, porque toma muitas vezes por tema a imaginação de futuros que tendem a ser apresentados como culturas mais ou menos homogéneas, pelo menos à escala planetária, é frequente pensar-se na FC como coisa razoavelmente distante das especificidades culturais dos seus autores e leitores, capaz de ser apreciada de forma razoavelmente homogénea por todos os leitores integrados na cultura global, ou pelo menos da subcultura global que se interessa por FC.

Faz sentido, algum, mas não é bem verdade, como bem sabe quem já leu mais que FC americana e por isso sabe que outras culturas fazem FC de uma forma pelo menos um pouco diferente. Até dentro da mesma língua há diferenças: Ballard só podia ser inglês; Heinlein só podia ser americano; os Strugatsky são soviéticos até à medula.

E este conto de Luiz Bras só podia ser brasileiro.

E sim, vai haver spoilers.

A Última Árvore é um mito. Um mito entre o povo da favela, que luta pela sobrevivência no mundo futuro criado por Bras de uma forma muito semelhante à mesma luta no Brasil de hoje, ainda que com as evoluções tecnológicas que seriam de esperar do futuro. E com o detalhe da favela estar isolada do resto do mundo (ou da metrópole, o que talvez seja a mesma coisa) por uma cúpula. O conto, fragmentário, é feito de fragmentos-memória e fragmentos-diálogo, ambos puros, ou quase. Os fragmentos-memória fornecem o contexto, e neles não há diálogos, com duas exceções; os fragmentos-diálogo são diálogo puro. Ambos estão centrados num chefe de bando, que procura gerir os seus homens e proteger o seu poder o melhor que pode, constantemente confrontado com o inesperado e procurando orientação na memória. E no mito da última árvore.

Mas o último diálogo, no qual as personagens se põem a divagar sobre a realidade e a ficção, transforma o conto num exercício de metaliteratura. Muito bem feito.

É mais um conto bastante bom de Luiz Bras, claro está.

Contos anteriores deste livro:

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