Bradbury foi importante para mim, e a sua morte doeu. Não porque fosse inesperada ou chocante: de um homem de 91 anos, e já doente há alguns, não se espera que continue a viver muito mais tempo. Não porque a sinta como uma perda em si mesma: o Bradbury recente era uma sombra do genial escritor de outrora e o seu conservadorismo não lhe permitiu acompanhar a mudança dos tempos. Em muitas coisas, Bradbury manteve-se agarrado ao seu apogeu, em meados do século XX. Não liguem a quem diz que os escritores de ficção científica não são homens como os outros, porque são. Alguns também chegam a um ponto em que se deixam ultrapassar pelo futuro em que passaram a carreira a pensar. E o Bradbury dos últimos anos era assim, nostálgico por um tempo que já não existe, o da sua juventude, e pelo futuro otimista e luminoso que desse tempo se entrevia. Mesmo apesar das nuvens ocasionais. Um futuro ingénuo. Como hoje sabemos, essa luz não se cumpriu.
Não foi, portanto, por isso que a morte de Bradbury me doeu. Foi por um motivo bem mais próximo, bem mais íntimo. Porque o primeiro livro de Bradbury que li, já nem me lembro bem qual (talvez As Máquinas da Alegria, talvez O Homem Ilustrado), foi-me passado para as mãos por um homem de olhos brilhantes de entusiasmo. "Lê isto," disse o meu pai, ainda só com alguns fios brancos no cabelo, a um eu adolescente que acabara de descobrir a ficção científica e de se apaixonar por ela. "Lê isto, que é uma maravilha." E eu li, e era, e a minha paixão pelo género solidificou um pouco mais graças a esse livro, a essa frase e ao brilho daqueles olhos.
Foi por isso que a morte de Bradbury me doeu. Porque com ele morreu mais um pouco do meu pai, morreu um pouco mais do seu entusiasmo, morreram as discussões que, segundo me contou, teve com os intelectuais que constituíam o seu círculo de amigos, tentando infrutiferamente convencê-los, lá pelos anos 50 ou 60, antes de eu sequer estar nos planos do Universo, de que Bradbury era um dos maiores escritores americanos vivos. Ele sempre gostou mais de Bradbury do que eu, e não surpreende que assim fosse: Bradbury era um homem do seu tempo, mas nunca foi do meu.
Quanto ao que eu acho que Bradbury foi, não vou escrever aqui nada. Não vale a pena: fui escrevendo sobre ele ao longo dos anos, enquanto ele ainda estava vivo. Basta-me enviar-vos para esses textos. Ei-los:
No E-nigma:
- A Morte é um Acto Solitário
- As Maçãs Douradas do Sol
- Cântico à Humanidade
- Fahrenheit 451
- O Homem Ilustrado
- O Mundo Marciano
- Regresso das Cinzas
- Conduzindo às Cegas
- Crónicas Marcianas
- E também textos sobre contos individuais nestes dois livros, acessíveis através de uma pesquisa
E é aí que os escritores não são homens como os outros.
Concordo com o que dizes, também eu sou um apologista da "homenagem em vida", mas as vezes a Morte "acorda nos" para a Vida, e se a sua morte fizer com que novos leitores o descubram, se a sua morte fizer com que aqueles já o conhecem o recordem e divulgem, então já me darei por contente. Bem sei que existe muito aproveitamento em casos destes, mas tentemos tirar o melhor proveito possível, dando a conhecer, ou pelo menos aguçando a curiosidade desse novos leitores deste ou de outros grandes autores, estejam eles já mortos ou ainda vivos, mas ignorados.
ResponderEliminarQuanto às memorias do teu pai tu ainda conviveste com ele, ainda tiveste oportunidade de conversar com ele, de por ele ser aconselhado, como foi o caso, existem pessoas, como eu que (quase) isso não tiveram. Não é suposto servir de consolo, mas serve para mostrar a vida de uma nova perspectiva.