A ficção científica é, com demasiada frequência, apresentada popularmente como se pretendesse constituir-se em bola de cristal do futuro, uma visão profética do porvir, inevitável como todas as profecias. Claro que mais tarde, quando se chega ao futuro e essa pseudoprofecia falha, não faltam as acusações contra um profeta que nunca quis sê-lo. Sim porque não é essa a ideia. Nunca é essa a ideia. A ideia é inspirar possibilidades ou alertar para possibilidades, comentar o presente, entreter, filosofar. Candidatos a profetas não têm lugar nas fileiras dos escritores de FC.
E no entanto, tenho de admitir a contragosto que às vezes parece o contrário.
Tome-se o caso do mexicano Jorge Eduardo Álvarez, cujo conto Náyade se passa num futuro distópico em que o Ku Klux Klan tomou conta da Casa Branca. Rings a bell?
Não, não é coisa dos anos Trump; a publicação que o traz foi publicada em 2000.
E sim, trata-se de uma história de fronteira vista pelo lado mexicano, protagonizada por um cidadão bem armado que quer passar ilegalmente uma fronteira implantada em terra devastada pela violência e pela poluição, tudo em grau hiper. O conto faz lembrar um pouco as ficções do nosso João Barreiros, pelo ambiente criado, pela utilização das migrações como motor narrativo e pela forma como aplica a vertigem tecnobabélica da FC dura, embora lhe falte a ironia que nunca anda muito longe dos textos do Barreiros e seja bastante mais curto do que é hábito nestes. Mas é uma história interessante, sem dúvida, mesmo que o final me pareça algo forçado, cortando demasiado curtas as mangas para que o pano aqui me pareceu dar.
quinta-feira, 31 de agosto de 2017
Lido: Mutação
Um título como Mutação remete diretamente para a ficção mais ou menos científica mas, como nem todas as mutações são genéticas ou causadas por bicharada repelente mais ou menos contaminada com contaminantes vários, não é isso que Regina Catarino aqui apresenta. Este é um conto de uma espécie de horror suave, quase amoroso, no qual uma vida até pode terminar abruptamente mas não é certo que isso signifique o fim da existência. De resto, o próprio título implica que não significa, antes quer dizer que algo que tinha a configuração xis passa a ter, magicamente, a configuração ípsilon. Estando longe de ser algo de extraordinário, é um conto com o seu interesse, construído em volta dos livros — todos os contos desta publicação o foram — e no qual o final é o que melhor resulta.
Contos anteriores deste livro:
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quarta-feira, 30 de agosto de 2017
Lido: Dilema
Publicar-se este conto de Connie Willis imediatamente a seguir a Que Pena!, de Isaac Asimov, foi tudo menos casualidade. É que Dilema (bibliografia) (e dificilmente um título poderia ser mais adequado) é uma espécie de "fanfic oficial", um conto ambientado no universo asimoviano dos robôs de cérebro positrónico, sujeitos às celebérrimas Três Leis. E claro que estas estão no centro de tudo, mas há aqui uma ironia adicional que, apesar de tudo (esta é exclusiva para iniciados à personalidade do "bom doutor"), só outro autor poderia pôr em prática: é que Isaac Asimov, o próprio, é um dos protagonistas do conto.
Começa este com um grupo de robôs que exigem falar com Asimov, esbarrando numa barragem de evasivas. Ainda assim, rapidamente o dilema fica claro, tornando igualmente claro o motivo da tentativa de visita. É que os robôs se sentem impossibilitados de exercer as suas tarefas por serem obrigados a obedecer à Primeira Lei, pois por vezes é necessário fazer um pequeno dano a um ser humano para se conseguir um bem maior (e Connie Willis dá vários exemplos, incluindo talvez o mais claro de todos: uma injeção, tantas vezes fundamental na medicina moderna, implica causar um pequeno dano ao paciente) e pretendem que Asimov a revogue.
Ou será que não?
O conto desenvolve-se ao típico jeito asimoviano: Connie Willis cria e explica um dilema lógico com base nas Três Leis e desenvolve-o até à sua conclusão, mas a história é também — ou talvez sobretudo — uma homenagem irónica e frequentemente iconoclasta ao próprio Asimov. Porque põe as Três Leis em causa, sim, mas não só. Porque está repleta de referências e rasgadíssimos elogios à obra do Bom Doutor e porque mostra Asimov como um vaidosíssimo pescador de adulação. O resultado é um conto bastante divertido e razoavelmente interessante em termos de exploração intelectual da situação criada.
Contos anteriores desta publicação:
Começa este com um grupo de robôs que exigem falar com Asimov, esbarrando numa barragem de evasivas. Ainda assim, rapidamente o dilema fica claro, tornando igualmente claro o motivo da tentativa de visita. É que os robôs se sentem impossibilitados de exercer as suas tarefas por serem obrigados a obedecer à Primeira Lei, pois por vezes é necessário fazer um pequeno dano a um ser humano para se conseguir um bem maior (e Connie Willis dá vários exemplos, incluindo talvez o mais claro de todos: uma injeção, tantas vezes fundamental na medicina moderna, implica causar um pequeno dano ao paciente) e pretendem que Asimov a revogue.
Ou será que não?
O conto desenvolve-se ao típico jeito asimoviano: Connie Willis cria e explica um dilema lógico com base nas Três Leis e desenvolve-o até à sua conclusão, mas a história é também — ou talvez sobretudo — uma homenagem irónica e frequentemente iconoclasta ao próprio Asimov. Porque põe as Três Leis em causa, sim, mas não só. Porque está repleta de referências e rasgadíssimos elogios à obra do Bom Doutor e porque mostra Asimov como um vaidosíssimo pescador de adulação. O resultado é um conto bastante divertido e razoavelmente interessante em termos de exploração intelectual da situação criada.
Contos anteriores desta publicação:
Lido: O Índio de Vilacamba
Mais um conto de Alexandra Pereira, mais uma dedicatória a um ilustre falecido, cabendo desta vez a algo duvidosa honra a Eugénio de Andrade. Não vislumbro porquê, contudo, pois o conto ambienta-se na América do Sul andina, num tempo mais ou menos presente em que o mundo moderno e as suas personagens ocidentalizadas continuam ainda a colidir com os mundos tradicionais e indígenas, que muitas vezes malentendem os seus usos, costumes e objetos. Pelos veios de poesia que atravessam a prosa, talvez? Não me parecem suficientes, mas quiçá.
Mas voltemos à história. É de um desses malentendidos entre o mundo moderno e o tradicional que nos fala O Índio de Vilacamba, e sim, é mesmo o índio de Vilacamba que nos fala, em primeira pessoa, relatando dois contactos com forasteiros. A uns serviu de guia para a ascensão de um certo cume. Outros deram-lhe um presente que leva ao desfecho da história por intermédio do tal malentendido.
Este é um conto fantástico, ainda que durante a maior parte da leitura não o pareça. Um conto mágico-realista que depende em parte do efeito surpresa do final para funcionar a contento. E sim, funciona a contento.
Contos anteriores deste livro:
Mas voltemos à história. É de um desses malentendidos entre o mundo moderno e o tradicional que nos fala O Índio de Vilacamba, e sim, é mesmo o índio de Vilacamba que nos fala, em primeira pessoa, relatando dois contactos com forasteiros. A uns serviu de guia para a ascensão de um certo cume. Outros deram-lhe um presente que leva ao desfecho da história por intermédio do tal malentendido.
Este é um conto fantástico, ainda que durante a maior parte da leitura não o pareça. Um conto mágico-realista que depende em parte do efeito surpresa do final para funcionar a contento. E sim, funciona a contento.
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terça-feira, 29 de agosto de 2017
Lido: Flip-Flip Crack-Crack
Às vezes há histórias que parecem ser inteiramente óbvias para qualquer leitor com alguma experiência de leitura, mas a páginas tantas, geralmente mesmo no fim ou perto disso, aparece um pequeno detalhe que os arranca à obviedade e recompensa os leitores persistentes. Flip-Flip Crack-Crack, de um Rui Leite de que julgo que nunca tinha lido nada, é uma dessas histórias. Não que seja necessária grande persistência para chegar ao fim; o conto é bem curtinho, o que aliás é timbre de toda a publicação em que se insere. Mas vocês percebem.
Estamos numa biblioteca e acompanhamos um segurança que, na primeira noite de serviço, é acordado pelo título e vai investigar, embora não devesse. O título de que falo é o da história, esclareça-se; uns estranhos ruídos de flip-flip crack-crack vindos de algures. É a investigação, o que lhe acontece por causa dela e as consequências mais ou menos explicativas da aventura que compõem esta história, da qual pouco mais falarei exceto para dizer que estamos em territórios lovecraftianos e que, apesar disso, o conto é mais divertido do que horrendo. Rui Leite brinca com o Mythos e eu, que também já o fiz à conta de um tal Mehamod, só posso achar muito bem.
Estamos numa biblioteca e acompanhamos um segurança que, na primeira noite de serviço, é acordado pelo título e vai investigar, embora não devesse. O título de que falo é o da história, esclareça-se; uns estranhos ruídos de flip-flip crack-crack vindos de algures. É a investigação, o que lhe acontece por causa dela e as consequências mais ou menos explicativas da aventura que compõem esta história, da qual pouco mais falarei exceto para dizer que estamos em territórios lovecraftianos e que, apesar disso, o conto é mais divertido do que horrendo. Rui Leite brinca com o Mythos e eu, que também já o fiz à conta de um tal Mehamod, só posso achar muito bem.
Lido: Que Pena!
As opiniões divergem, e muito há por aí quem eleja a série da Fundação (minto: a trilogia original da Fundação, o que não é bem a mesma coisa) como os melhores livros de Isaac Asimov. Parece-me ideia inteiramente válida, mas para mim as obras que realmente resumem quem foi Asimov como escritor — um escritor frio, cerebral, de estilo direto, unicamente interessado em contar uma história na qual explora intelectualmente um determinado problema — são os seus contos sobre os robôs de cérebros positrónicos.
E este Que Pena! (bibliografia) é um deles. Mas é um deles de uma forma um pouco incaracterística, parecendo de certa forma uma fusão entre a série dos robôs positrónicos e a da Viagem Fantástica. Nele encontramos o robô MIK-27, ou Mike, e o seu dono, um homem gravemente doente com um cancro, que decide entregar-se nas competentes mãos de Mike, de um Mike miniaturizado, para ser operado. Só que há um senão: a miniaturização está sujeita a incertezas quânticas, tanto mais graves quanto mais miniaturizadas forem as coisas, e por isso a operação comporta um risco significativo ligado à expansão descontrolada do robô-cirurgião.
E claro que esse problema vai ter de ser resolvido de acordo com as Três Leis da Robótica.
Este é um conto interessante de ficção científica, claro. Mas não é dos melhores, em grande medida porque a exposição do problema, que ocupa a maior parte do conto, já fornece pistas fortes sobre o desfecho que a história acabará por ter, pelo menos para os leitores já familiarizados com a espécie de dilemas morais que envolvem as Três Leis. Um neófito talvez tenha uma perspetiva diferente, mas confesso que este conto me soube a pouco. E o facto de já o ter lido (há algumas décadas, mas mesmo assim) e não me lembrar absolutamente nada dele também quer dizer qualquer coisa.
Conto anterior desta publicação:
E este Que Pena! (bibliografia) é um deles. Mas é um deles de uma forma um pouco incaracterística, parecendo de certa forma uma fusão entre a série dos robôs positrónicos e a da Viagem Fantástica. Nele encontramos o robô MIK-27, ou Mike, e o seu dono, um homem gravemente doente com um cancro, que decide entregar-se nas competentes mãos de Mike, de um Mike miniaturizado, para ser operado. Só que há um senão: a miniaturização está sujeita a incertezas quânticas, tanto mais graves quanto mais miniaturizadas forem as coisas, e por isso a operação comporta um risco significativo ligado à expansão descontrolada do robô-cirurgião.
E claro que esse problema vai ter de ser resolvido de acordo com as Três Leis da Robótica.
Este é um conto interessante de ficção científica, claro. Mas não é dos melhores, em grande medida porque a exposição do problema, que ocupa a maior parte do conto, já fornece pistas fortes sobre o desfecho que a história acabará por ter, pelo menos para os leitores já familiarizados com a espécie de dilemas morais que envolvem as Três Leis. Um neófito talvez tenha uma perspetiva diferente, mas confesso que este conto me soube a pouco. E o facto de já o ter lido (há algumas décadas, mas mesmo assim) e não me lembrar absolutamente nada dele também quer dizer qualquer coisa.
Conto anterior desta publicação:
Lido: O Músico Naufragado
Alexandra Pereira parece ter a mania de dedicar contos a escritores famosos que mais que provavelmente nunca os lerão (até porque muitos já morreram e depois de mortos, convenhamos, torna-se difícil). Depois de dedicar o anterior a Gabriel García-Márquez (lá está; já morreu), este segue com um beijinho para Enrique Vila-Matas, que, vá lá, ainda está vivo. Cada um com a sua mania, como se costuma dizer, mas pelo menos esta é benigna. Há piores.
E este conto até é bom. O Músico Naufragado é precisamente sobre o que o título indica: um pianista polaco que descreve em primeira pessoa o que sentiu e pensou quando o barco em que seguia foi ao fundo no Mar do Norte. É um conto intimista, mas que conta uma história entre os pensamentos, desabafos e arremedos de sinestesia do protagonista-narrador. Bastante bem escrito, sem o mínimo diálogo que pudesse tentar a autora a substituir falas concretas de seres humanos por arroubos discursivos de títeres de papel, este conto funciona bastante bem, incluindo até os apartes entre parêntesis que
(coisas destas, não sei se estão a ver)
passam o conto inteiro a imiscuir-se na narrativa. Esta forna de narrar não é coisa que me agrade quando não está bem feita, mas quando está, e para estar é preciso que faça sentido e seja usada com motivo, pode resultar bastante bem e melhorar o texto. E é o caso neste conto.
Quanto a géneros, o que me interessa quando for introduzir este livro no Bibliowiki à conta do conto anterior e dos mais que adiante se verão, se visto sob um certo ponto de vista julgo que se pode achar que este conto se aproxima do horror (o homem apanha um grande susto, afinal), mas a mim parece ser fundamentalmente um conto realista. Mas bom.
Contos anteriores deste livro:
E este conto até é bom. O Músico Naufragado é precisamente sobre o que o título indica: um pianista polaco que descreve em primeira pessoa o que sentiu e pensou quando o barco em que seguia foi ao fundo no Mar do Norte. É um conto intimista, mas que conta uma história entre os pensamentos, desabafos e arremedos de sinestesia do protagonista-narrador. Bastante bem escrito, sem o mínimo diálogo que pudesse tentar a autora a substituir falas concretas de seres humanos por arroubos discursivos de títeres de papel, este conto funciona bastante bem, incluindo até os apartes entre parêntesis que
(coisas destas, não sei se estão a ver)
passam o conto inteiro a imiscuir-se na narrativa. Esta forna de narrar não é coisa que me agrade quando não está bem feita, mas quando está, e para estar é preciso que faça sentido e seja usada com motivo, pode resultar bastante bem e melhorar o texto. E é o caso neste conto.
Quanto a géneros, o que me interessa quando for introduzir este livro no Bibliowiki à conta do conto anterior e dos mais que adiante se verão, se visto sob um certo ponto de vista julgo que se pode achar que este conto se aproxima do horror (o homem apanha um grande susto, afinal), mas a mim parece ser fundamentalmente um conto realista. Mas bom.
Contos anteriores deste livro:
segunda-feira, 28 de agosto de 2017
Lido: Muitas Mansões
Vamos usar a imaginação? Bora lá.
Imaginem que a viagem no tempo é possível, não através de máquinas especiais ou cartões cronais, mas por intermédio de túneis dimensionais, que ligam locais específicos do espaçotempo e podem ser usados por qualquer um que conheça a sua localização. Imaginem que este facto permite que uma série de raças alienígenas tenham vindo a utilizar a Terra como domicílio temporário, muito à semelhança do que acontece na série de filmes Men in Black, com a diferença de que não estamos a falar apenas do presente mas de toda a história do planeta. Imaginem que, também à semelhança do Will Smith e amigos, existe uma força policial secreta com a função de manter alguma ordem no planeta, a Guarda Transtemporal, uma força multi-específica com a sua hierarquia e os seus operacionais. E imaginem, embora esta parte não exija grande esforço imaginativo, que há criminosos que têm de ser encontrados e detidos.
Mas agora imaginem mais uma coisa: imaginem que um desses criminosos é um perigoso traficante de uma droga terráquea das mais daninhas à escala galáctica, apesar de não ser uma substância química, mas uma ideia: a revelação religiosa.
Se conseguirem imaginar tudo isto, têm na mão os ingredientes com que Alexander Jablokov constrói Muitas Mansões (bibliografia), uma noveleta divertida, muito irónica e razoavelmente movimentada, que leva o leitor a saltitar no tempo, de momento-chave na história das religiões em momento-chave, enquanto vai assistindo, de peripécia em peripécia, a uma demorada investigação policial. Decididamente não aconselhada a leitores religiosos, especialmente se pertencerem à variedade fanática, pois Jablokov é bastante iconoclasta. Faz lembrar os filmes dos MiB, sim, mas também faz lembrar os brasileiros da Intempol, sobre os quais até pode ter tido alguma influência; afinal, esta noveleta foi publicada por lá menos de uma década antes de Eu Matei Paolo Rossi.
No entanto, a história não está livre de alguns problemas. Parece-me, por exemplo, que se começa a tornar algo repetitiva demasiado longe do final. O humor tem um tempo certo para maximizar a eficácia, e a sensação com que eu fiquei ao ler este texto foi que ele ultrapassou demasiado esse tempo certo. Não estou a dizer que não gostei ou o acho mau; estou apenas a dizer que com algumas peripécias (e religiões) a menos o impacto seria provavelmente maior e a piada também. Porque sim, é principalmente o humor que faz mexer esta história. Trata-se de uma crítica bem-humorada ao fenómeno religioso, que usa mecanismos típicos da ficção científica como motor narrativo mas sem os tornar centrais ao que está a ser contado.
Em suma, uma história engraçada, com potencial algo superior ao que foi concretizado.
Imaginem que a viagem no tempo é possível, não através de máquinas especiais ou cartões cronais, mas por intermédio de túneis dimensionais, que ligam locais específicos do espaçotempo e podem ser usados por qualquer um que conheça a sua localização. Imaginem que este facto permite que uma série de raças alienígenas tenham vindo a utilizar a Terra como domicílio temporário, muito à semelhança do que acontece na série de filmes Men in Black, com a diferença de que não estamos a falar apenas do presente mas de toda a história do planeta. Imaginem que, também à semelhança do Will Smith e amigos, existe uma força policial secreta com a função de manter alguma ordem no planeta, a Guarda Transtemporal, uma força multi-específica com a sua hierarquia e os seus operacionais. E imaginem, embora esta parte não exija grande esforço imaginativo, que há criminosos que têm de ser encontrados e detidos.
Mas agora imaginem mais uma coisa: imaginem que um desses criminosos é um perigoso traficante de uma droga terráquea das mais daninhas à escala galáctica, apesar de não ser uma substância química, mas uma ideia: a revelação religiosa.
Se conseguirem imaginar tudo isto, têm na mão os ingredientes com que Alexander Jablokov constrói Muitas Mansões (bibliografia), uma noveleta divertida, muito irónica e razoavelmente movimentada, que leva o leitor a saltitar no tempo, de momento-chave na história das religiões em momento-chave, enquanto vai assistindo, de peripécia em peripécia, a uma demorada investigação policial. Decididamente não aconselhada a leitores religiosos, especialmente se pertencerem à variedade fanática, pois Jablokov é bastante iconoclasta. Faz lembrar os filmes dos MiB, sim, mas também faz lembrar os brasileiros da Intempol, sobre os quais até pode ter tido alguma influência; afinal, esta noveleta foi publicada por lá menos de uma década antes de Eu Matei Paolo Rossi.
No entanto, a história não está livre de alguns problemas. Parece-me, por exemplo, que se começa a tornar algo repetitiva demasiado longe do final. O humor tem um tempo certo para maximizar a eficácia, e a sensação com que eu fiquei ao ler este texto foi que ele ultrapassou demasiado esse tempo certo. Não estou a dizer que não gostei ou o acho mau; estou apenas a dizer que com algumas peripécias (e religiões) a menos o impacto seria provavelmente maior e a piada também. Porque sim, é principalmente o humor que faz mexer esta história. Trata-se de uma crítica bem-humorada ao fenómeno religioso, que usa mecanismos típicos da ficção científica como motor narrativo mas sem os tornar centrais ao que está a ser contado.
Em suma, uma história engraçada, com potencial algo superior ao que foi concretizado.
Lido: Feitiço de Dona Divina
Alexandra Pereira dedica esta história a Gabriel Garcia Márquez, deixando desde logo clara a origem de parte da inspiração para a escrever. Com efeito, no ambiente traçado para Feitiço de Dona Divina há qualquer coisa de Macondo, e uma espécie de realismo mágico razoavelmente surreal embebe todo o conto, que no entanto se foca uma vez mais em coisas bem mundanas: um protagonista inventor e mulherengo e o despeito da mulher legítima e demasiadas vezes abandonada ou traída, o que a leva a procurar os serviços da Dona Divina do título, feiticeira das mais poderosas. À semelhança do primeiro conto, a qualidade do português é superior à do enredo, ainda que este conto seja a meu ver bastante melhor, não só porque todo o ambiente está bastante mais sólido (o que é curioso, tendo em vista que é bem mais fantasioso), como porque não existem aqui problemas com a inverosimilhança dos diálogos, os quais, de resto, quase não existem.
Conto anterior deste livro:
Conto anterior deste livro:
quinta-feira, 24 de agosto de 2017
Lido: Alfarrobeiras em Flor
A literatura portuguesa está literalmente ajoujada sob o peso da quantidade de histórias rurais, quase sempre realistas mesmo quando a superstição popular faz sair do folclore figuras míticas, que foi produzindo ao longo dos séculos. Com Alfarrobeiras em Flor, Alexandra Pereira propõe mais uma. Mundana e bastante banal apesar dos nomes abizarrados que escolheu para batizar as personagens, a história dedica-se a traçar a rápidas pinceladas uma situação de relação familiar tensa, na qual uma jovem usa uma gravidez e a decisão de partilhar a vida com um homem para se emancipar da algo sufocante relação com o pai. O conto até está bem escrito, mas a fraca verosimilhança dos diálogos, demasiado elaborados, por vezes mesmo discursivos, para quem são as personagens, o pouco interesse que o tema me desperta e um final sem impacto levaram-me a não ter gostado grandemente dele.
sábado, 5 de agosto de 2017
Os estudos do Pedro Reis
Uma das consequências de eu ter criado e passado dez anos a alimentar o Bibliowiki (até agora) é ter desviado parte das leituras para responder à curiosidade sobre se a publicação Xis ou Ípsilon tem alguma coisa a ver com literatura fantástica e, portanto, se se pode ou não inclui-la no site.
Outra consequência é gastar algum do tempo dedicado ao site a fazer pesquisas na net. Pesquisas sobre as edições deste ou daquele livro, pesquisas sobre termos específicos, enfim, pesquisas sobre as coisas mais variadas. E muitas vezes, dessas pesquisas resultam achados inesperados. Coisas que encontro enquanto procuro outras coisas.
Alguns desses achados são rapidamente enquadráveis. Outros há, contudo, que são gravados no meu disco e lá ficam à espera que eu tenha tempo ou me lembre de lhes prestar atenção. Normalmente durante longos anos.
Vem isto a propósito de um artigo científico que descobri há anos e anos, intitulado "O diagnóstico de concepções sobre os cientistas através da análise e discussão de histórias de ficção científica redigidas pelos alunos" e assinado por Pedro Reis e Cecília Galvão. Mais científico do que este título? Impossível. Talvez tenha sido em parte por isso que ficou a marinar.
Recentemente, peguei nele e li-o. É precisamente sobre o que o título diz, faltando-lhe só explicitar que se trata de alunos do fim do ensino secundário e que as histórias de FC escritas por eles serviram como sintoma indicativo da imagem da ciência e dos cientistas entre a população dessas idades, o que não impediu que eu me sentisse surpreendido. Convenhamos: não é todos os dias que vemos a ficção científica ser usada num estudo académico, especialmente quando não é caso único.
É que depois de ler este artigo (que pode ser encontrado aqui, já agora) fui escavar mais e descobri que o mesmo Pedro Reis, agora acompanhado por Sara Rodrigues e Filipa Santos, publicou um outro, com um título igualmente comprido: "Concepções sobre os cientistas em alunos do 1º ciclo do Ensino Básico: “Poções, máquinas, monstros, invenções e outras coisas malucas”". Encontra-se aqui, e foi daí que saquei o desenho que decora este post.
Este artigo não é especificamente sobre FC, mas o género faz a sua aparição, o que aliás o próprio título já sugere. E analisa as ideias de miúdos bastante mais novos, entre os sete e os dez anos, sobre essa coisa de cientistas e ciência.
Também encontrei aquilo que mais que provavelmente terá dado origem a toda a linha de investigação, a tese de doutoramento em Educação - Didática das Ciências do Pedro Reis. O título deste é mais curto, mas vem acompanhado de subtítulo. A nós basta-nos o título: "Controvérsias Sócio-Científicas: Discutir ou não Discutir?" Está aqui. Esta tese não li (são 488 páginas, calma!... talvez um dia), mas folheei-a o suficiente para perceber que dela consta a investigação que deu origem ao primeiro dos dois artigos, incluindo os contos publicados nele e mais alguns.
Imagino que a tese de doutoramento seja um bocadinho indigesta, porque é o que as teses de doutoramento geralmente são, mas os artigos são leitura muito interessante. Não só pelos contos que, apesar de literariamente maus, como seria de esperar (são miúdos que muito provavelmente nunca antes tinham escrito ficção, alunos que não foram escolhidos por mostrarem alguma predisposição específica para a literatura mas por terem a disciplina de Ciências da Terra e da Vida (os mais velhos) ou por pertencerem às turmas selecionadas (os mais novos)... e de resto, a generalidade dos contos que eu escrevi nessas idades também eram literariamente maus. Digo, muito maus. E ó, o engraçadinho aí da fila de trás a dizer que ainda são! Eu ouvi.), têm de facto interesse, extraliterário, digamos, mas por tudo o que transparece dos estudos e pelas conclusões que o Pedro Reis (e coautores) deles tiram. Mas vamos por partes.
Comecemos pelos contos dos miúdos.
Para quem escreve e aprecia FC, como eu, ler os contos dos miúdos (em especial dos mais velhos) fornece uma panóplia de informações sobre os conceitos que eles têm do que é, afinal, isso de ficção científica. Nada de muito inesperado: eles olham a FC com olhos de cinema, televisão e jogos de computador, não da literatura. Não sei se algum deles leu algum livro de FC antes de escrever a sua história mas, francamente, não parece. E, francamente, é naturalíssimo que assim seja: quantos livros de ficção científica, identificados como tal, veem vocês à venda na vossa livraria favorita? Zero, certo? Pois. Mas é interessante ver que histórias eles arranjaram e o que associam à FC. Interessante e de certa forma também um pouco surpreendente pela antiguidade dos conceitos. As histórias dos miúdos estão muito mais próximas da FC do início do século XX do que daquela que se faz hoje. Porquê? Boa pergunta, a que o amigo Reis não responde porque não é esse o foco do seu estudo, mas aposto que a culpa cai redondinha nos jogos de computador e nos desenhos animados (é que nem o cinema de FC atual usa conceitos tão antiquados) a que aquela malta é exposta enquanto vai crescendo, a par da própria escola. Essa ideia, aliás, fica reforçada com o artigo sobre os miúdos mais novos, onde se encontram mais ou menos os mesmos conceitos, igualmente antiquíssimos.
Estes artigos deixaram-me a pensar. O Pedro Reis queixa-se, com absoluta razão, e como é evidente já estou a falar das conclusões, de que o material a que os miúdos são expostos distorce profundamente a conceção que fazem da atividade científica e de quem são e como trabalham os que a ela se dedicam. E alerta que isso pode ter consequências graves tanto na compreensão futura da ciência, como no eventual desenvolvimento de tendências anticientíficas e anti-intelectuais, com o que isso pode ter de catastrófico para o futuro das nossas sociedades. Imaginem os EUA de hoje, mas em pior.
E deixaram-me a pensar também que se calhar nós, os que nos dedicamos mais a sério à ficção científica, por menos poder que individualmente tenhamos no grande esquema das coisas, temos ainda assim alguma responsabilidade de não ceder a fórmulas antigas, distorcidas e fáceis e apresentar a atividade científica mais como ela é na realidade: feita por gente, não por títeres de papelão, feita em equipa, não por génios tresloucados enfiados sozinhos na cave, feita por homens e mulheres, não exclusivamente por homens de cabelos brancos enfiados em batas igualmente brancas. É que continuam, ainda hoje, a ser produzidas ficções assim. E se calhar, só se calhar, está mais que na hora de enterrar de uma vez por todas o cientista frio, solitário, solipsista e sociopático, ou pelo menos de usar esse velhíssimo cliché para o virar contra si mesmo.
Para já, parece-me que seria bom se os que escrevem e editam FC lessem estes artigos do Pedro Reis. Tenho quase a certeza de que a maioria acabaria por aprender qualquer coisa com eles. Eu certamente aprendi.
Outra consequência é gastar algum do tempo dedicado ao site a fazer pesquisas na net. Pesquisas sobre as edições deste ou daquele livro, pesquisas sobre termos específicos, enfim, pesquisas sobre as coisas mais variadas. E muitas vezes, dessas pesquisas resultam achados inesperados. Coisas que encontro enquanto procuro outras coisas.
Alguns desses achados são rapidamente enquadráveis. Outros há, contudo, que são gravados no meu disco e lá ficam à espera que eu tenha tempo ou me lembre de lhes prestar atenção. Normalmente durante longos anos.
Vem isto a propósito de um artigo científico que descobri há anos e anos, intitulado "O diagnóstico de concepções sobre os cientistas através da análise e discussão de histórias de ficção científica redigidas pelos alunos" e assinado por Pedro Reis e Cecília Galvão. Mais científico do que este título? Impossível. Talvez tenha sido em parte por isso que ficou a marinar.
Recentemente, peguei nele e li-o. É precisamente sobre o que o título diz, faltando-lhe só explicitar que se trata de alunos do fim do ensino secundário e que as histórias de FC escritas por eles serviram como sintoma indicativo da imagem da ciência e dos cientistas entre a população dessas idades, o que não impediu que eu me sentisse surpreendido. Convenhamos: não é todos os dias que vemos a ficção científica ser usada num estudo académico, especialmente quando não é caso único.
É que depois de ler este artigo (que pode ser encontrado aqui, já agora) fui escavar mais e descobri que o mesmo Pedro Reis, agora acompanhado por Sara Rodrigues e Filipa Santos, publicou um outro, com um título igualmente comprido: "Concepções sobre os cientistas em alunos do 1º ciclo do Ensino Básico: “Poções, máquinas, monstros, invenções e outras coisas malucas”". Encontra-se aqui, e foi daí que saquei o desenho que decora este post.
Este artigo não é especificamente sobre FC, mas o género faz a sua aparição, o que aliás o próprio título já sugere. E analisa as ideias de miúdos bastante mais novos, entre os sete e os dez anos, sobre essa coisa de cientistas e ciência.
Também encontrei aquilo que mais que provavelmente terá dado origem a toda a linha de investigação, a tese de doutoramento em Educação - Didática das Ciências do Pedro Reis. O título deste é mais curto, mas vem acompanhado de subtítulo. A nós basta-nos o título: "Controvérsias Sócio-Científicas: Discutir ou não Discutir?" Está aqui. Esta tese não li (são 488 páginas, calma!... talvez um dia), mas folheei-a o suficiente para perceber que dela consta a investigação que deu origem ao primeiro dos dois artigos, incluindo os contos publicados nele e mais alguns.
Imagino que a tese de doutoramento seja um bocadinho indigesta, porque é o que as teses de doutoramento geralmente são, mas os artigos são leitura muito interessante. Não só pelos contos que, apesar de literariamente maus, como seria de esperar (são miúdos que muito provavelmente nunca antes tinham escrito ficção, alunos que não foram escolhidos por mostrarem alguma predisposição específica para a literatura mas por terem a disciplina de Ciências da Terra e da Vida (os mais velhos) ou por pertencerem às turmas selecionadas (os mais novos)... e de resto, a generalidade dos contos que eu escrevi nessas idades também eram literariamente maus. Digo, muito maus. E ó, o engraçadinho aí da fila de trás a dizer que ainda são! Eu ouvi.), têm de facto interesse, extraliterário, digamos, mas por tudo o que transparece dos estudos e pelas conclusões que o Pedro Reis (e coautores) deles tiram. Mas vamos por partes.
Comecemos pelos contos dos miúdos.
Para quem escreve e aprecia FC, como eu, ler os contos dos miúdos (em especial dos mais velhos) fornece uma panóplia de informações sobre os conceitos que eles têm do que é, afinal, isso de ficção científica. Nada de muito inesperado: eles olham a FC com olhos de cinema, televisão e jogos de computador, não da literatura. Não sei se algum deles leu algum livro de FC antes de escrever a sua história mas, francamente, não parece. E, francamente, é naturalíssimo que assim seja: quantos livros de ficção científica, identificados como tal, veem vocês à venda na vossa livraria favorita? Zero, certo? Pois. Mas é interessante ver que histórias eles arranjaram e o que associam à FC. Interessante e de certa forma também um pouco surpreendente pela antiguidade dos conceitos. As histórias dos miúdos estão muito mais próximas da FC do início do século XX do que daquela que se faz hoje. Porquê? Boa pergunta, a que o amigo Reis não responde porque não é esse o foco do seu estudo, mas aposto que a culpa cai redondinha nos jogos de computador e nos desenhos animados (é que nem o cinema de FC atual usa conceitos tão antiquados) a que aquela malta é exposta enquanto vai crescendo, a par da própria escola. Essa ideia, aliás, fica reforçada com o artigo sobre os miúdos mais novos, onde se encontram mais ou menos os mesmos conceitos, igualmente antiquíssimos.
Estes artigos deixaram-me a pensar. O Pedro Reis queixa-se, com absoluta razão, e como é evidente já estou a falar das conclusões, de que o material a que os miúdos são expostos distorce profundamente a conceção que fazem da atividade científica e de quem são e como trabalham os que a ela se dedicam. E alerta que isso pode ter consequências graves tanto na compreensão futura da ciência, como no eventual desenvolvimento de tendências anticientíficas e anti-intelectuais, com o que isso pode ter de catastrófico para o futuro das nossas sociedades. Imaginem os EUA de hoje, mas em pior.
E deixaram-me a pensar também que se calhar nós, os que nos dedicamos mais a sério à ficção científica, por menos poder que individualmente tenhamos no grande esquema das coisas, temos ainda assim alguma responsabilidade de não ceder a fórmulas antigas, distorcidas e fáceis e apresentar a atividade científica mais como ela é na realidade: feita por gente, não por títeres de papelão, feita em equipa, não por génios tresloucados enfiados sozinhos na cave, feita por homens e mulheres, não exclusivamente por homens de cabelos brancos enfiados em batas igualmente brancas. É que continuam, ainda hoje, a ser produzidas ficções assim. E se calhar, só se calhar, está mais que na hora de enterrar de uma vez por todas o cientista frio, solitário, solipsista e sociopático, ou pelo menos de usar esse velhíssimo cliché para o virar contra si mesmo.
Para já, parece-me que seria bom se os que escrevem e editam FC lessem estes artigos do Pedro Reis. Tenho quase a certeza de que a maioria acabaria por aprender qualquer coisa com eles. Eu certamente aprendi.
sexta-feira, 4 de agosto de 2017
Lido: O Dia Perfeito
O Dia Perfeito, de um Vergílio Alberto Vieira que eu não só nunca tinha lido como de quem nunca sequer tinha ouvido falar (e de quem, se tudo correr bem, nunca mais na vida lerei uma palavra que seja), é um exercício de estilo. E um exercício de estilo muitíssimo pretensioso, ainda por cima. Um exercício de estilo praticamente vazio de conteúdo (há umas vagas referências a um cancro, mas que pouca importância têm) e absolutamente preocupado com a forma, abordagem que eu considero tão má como a daquelas ficções que só se preocupam com o enredo, esquecendo-se de que literatura também é forma. Mas mostremos. Nada como uma breve citação para melhor ilustrar o que isto é:
Sim, aquele parágrafo está mesmo assim, não é gralha. Julgo que não custa perceber por que motivo eu considero este, de muito longe, o pior texto de todos os que compõem esta antologia. Há quem aprecie experimentalismos vácuos, malabarismos verbais sem nada que os sustente, esta noção disparatada de que literatura é feita de palavras e de mais coisíssima nenhuma. Pois que sejam felizes. Visto daqui, este tipo de coisa tem precisamente o mesmo valor da mais mal escrita literatura pastilha-elástica que se encontra aos pontapés no Wattpad: é muito, muito mau.
Contos anteriores deste livro:
Ao patamar superior, os braços. A doer. Apeteceu-lhe descer ainda. Entregar os passos a
quando a chave. Oleada de silêncio. Impôs-se. O primeiro volteio. E a breve ocultação de sombra pelo soalho.
Sim, aquele parágrafo está mesmo assim, não é gralha. Julgo que não custa perceber por que motivo eu considero este, de muito longe, o pior texto de todos os que compõem esta antologia. Há quem aprecie experimentalismos vácuos, malabarismos verbais sem nada que os sustente, esta noção disparatada de que literatura é feita de palavras e de mais coisíssima nenhuma. Pois que sejam felizes. Visto daqui, este tipo de coisa tem precisamente o mesmo valor da mais mal escrita literatura pastilha-elástica que se encontra aos pontapés no Wattpad: é muito, muito mau.
Contos anteriores deste livro:
quinta-feira, 3 de agosto de 2017
Lido: Narrativa Sombria, Mais Sombrio Narrador
Há contos que não são nada aquilo que deles se espera. Bem sei que comecei uma opinião com uma frase muito parecida há pouquíssimo tempo, mas convenhamos que pegar num conto com o título de Narrativa Sombria, Mais Sombrio Narrador e descobrir uma história carregadinha de humor e fina ironia é caso para um pequeno desabafo como este.
Mesmo sendo o humor razoavelmente negro (sombrio, diria até) e tendo o conto muito de insólito. Trata-se de um daqueles contos, muito em voga no século XIX e início do XX, nos quais um grupo de cavalheiros se reúne para contar histórias. Villiers de l'Isle-Adam, no entanto, não nos apresenta a história de fantasmas ou espantosas sobrenaturalidades que tantas vezes é o resultado literário de tais reuniões, mas sim uma história relativamente prosaica sobre um duelo de honra, ao qual o narrador da história teria servido de testemunha.
Contudo, e é aqui que entra tanto a ironia como o insólito, tudo é encarado pelos ouvintes como se de uma encenação teatral ou uma criação dramatúrgica se tratasse. Não que o duelo em si mesmo tivesse sido uma farsa; pelo contrário, dele resultaram mortes. Mas mesmo assim, toda aquela gente só parece interessada em discutir os méritos do enredo, os clichés, as qualidades histriónicas dos "atores," por aí fora. Adam parece rir de dois coelhos com uma só cajadada: do artificialismo e alienação das gentes ligadas ao teatro, por um lado, e da teatralidade fundamentalmente ridícula dos duelos de honra por outro.
Outra forma de olhar para esta história poderá encontrar nela uma certa fragilização do tecido da realidade, o que colocaria Adam como predecessor de algo que foi desenvolvido com grande profundidade, várias décadas mais tarde, por muitos escritores de ficção científica, com Philip K. Dick à cabeça. Mas pessoalmente duvido que fosse essa a intenção do autor. Seja como for, esta é uma história com claro interesse.
Conto anterior desta publicação:
Mesmo sendo o humor razoavelmente negro (sombrio, diria até) e tendo o conto muito de insólito. Trata-se de um daqueles contos, muito em voga no século XIX e início do XX, nos quais um grupo de cavalheiros se reúne para contar histórias. Villiers de l'Isle-Adam, no entanto, não nos apresenta a história de fantasmas ou espantosas sobrenaturalidades que tantas vezes é o resultado literário de tais reuniões, mas sim uma história relativamente prosaica sobre um duelo de honra, ao qual o narrador da história teria servido de testemunha.
Contudo, e é aqui que entra tanto a ironia como o insólito, tudo é encarado pelos ouvintes como se de uma encenação teatral ou uma criação dramatúrgica se tratasse. Não que o duelo em si mesmo tivesse sido uma farsa; pelo contrário, dele resultaram mortes. Mas mesmo assim, toda aquela gente só parece interessada em discutir os méritos do enredo, os clichés, as qualidades histriónicas dos "atores," por aí fora. Adam parece rir de dois coelhos com uma só cajadada: do artificialismo e alienação das gentes ligadas ao teatro, por um lado, e da teatralidade fundamentalmente ridícula dos duelos de honra por outro.
Outra forma de olhar para esta história poderá encontrar nela uma certa fragilização do tecido da realidade, o que colocaria Adam como predecessor de algo que foi desenvolvido com grande profundidade, várias décadas mais tarde, por muitos escritores de ficção científica, com Philip K. Dick à cabeça. Mas pessoalmente duvido que fosse essa a intenção do autor. Seja como for, esta é uma história com claro interesse.
Conto anterior desta publicação:
Lido: Os Dois Viajantes
Lídia Jorge apresenta o único conto inédito entre os trinta que compõem esta antologia. E é um conto fantástico. O protagonista de Os Dois Viajantes é um engenheiro de estradas, como não se cansa de repetir nesta narrativa em primeira pessoa, que um belo dia é chamado à terra natal, uma aldeola qualquer perdida algures, por um velho amigo de infância que se encontra moribundo. E que lhe quer, o amigo? Vê-lo? Não. Quer que lhe confirme que na sua vida existiu realmente um prodígio, que este não foi mero fruto de uma imaginação gabarola, que ele realmente conseguiu levantar um comboio à pura força de braços. Não que este elemento insólito fique inteiramente assente como facto provado; o fantástico aqui é daqueles que pretendem deixar no ar alguma dúvida. Todorov acenaria a sua aprovação. E vem acompanhado, falo do fantástico, por uma prosa palavrosa, labiríntica, mas de qualidade no trato da língua. Há quem goste de prosa assim, há quem não goste nada; para mim, é um estilo que, não havendo muito cuidado, facilmente se pode tornar cansativo em textos longos. Mas como este não o é funciona bastante bem.
Contos anteriores deste livro:
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quarta-feira, 2 de agosto de 2017
Lido: D. Pedro I e... Último
Por iniciativa de Rogério Amaral de Vasconcellos, o segundo universo partilhado mais longevo da ficção especulativa em língua portuguesa foi sendo desenvolvido no Brasil entre 2003 e 2005 (o primeiro é o da Intempol, também predominantemente brasileiro). A ideia base andava algures entre uma ficção científica mais ou menos ufológica e o misticismo: num contexto de universos paralelos, viagens no tempo e linhas históricas alternativas (ecos da Intempol?), uma entidade chamada Zelador abduzia indivíduos e com eles realizava experiências de alteração histórica. Chamava-se SLEV e foram publicados 29 ebooks em PDF, contendo ficções curtas que deverão ter dimensões entre a noveleta e a novela. Não sei com certeza porque só tive acesso a este D. Pedro I e... Último (bibliografia).
Nesta noveleta de Gabriel Bozano, carregada de ação e com uma pegada pulp muito evidente (o que, de resto, não deve ser caso único nesta série, bem pelo contrário), a intervenção alienígena vai alterar a história do Brasil mesmo no seu início enquanto estado independente quando aquele que na história verdadeira foi D. Pedro I, o primeiro imperador do Brasil, é abatido por uma arma de raios no preciso momento em que começa a dar o celebérrimo grito do Ipiranga. E como resultado surge uma linha histórica alternativa em que o Brasil se mantém colónia, sim, mas não de Portugal; da Inglaterra. Outro resultado é o desaparecimento do assassino; o primeiro paradoxo temporal a surgir na história... mas não o último.
Toma então a história uma feição bem próxima do steampunk clássico, pois de repente vemo-nos numa colónia inglesa em plena época vitoriana sem no entanto sairmos do Brasil, e até há tecnologias demasiado avançadas para a época e tudo. Aqui, o enredo torna-se ainda mais rocambolesco, envolvendo uma caçada a um pássaro gigante mais ou menos mitológico (parcialmente conduzida por pelo explorador Livingstone, nada menos), que não era bem o que parecia e a partir daí o enredo só fica mais enredado até ao fim.
Para quem gosta de histórias pulp rocambolescas, esta é um pratinho cheio. Apesar das múltiplas oportunidades para perder o fio à história, Bozano consegue amarrá-la razoavelmente bem e o final é realmente bom, rematando a história a contento e de uma forma puramente de ficção científica.
Mas nem tudo é satisfatório, por motivos objetivos e subjetivos. Pelo lado daqueles, a prosa não é a melhor, incluindo mesmo alguns erros dificilmente perdoáveis ("Há alguns metros dali", por exemplo), que demonstram a falta que faz uma revisão profissional, aqui inexistente, e incluindo também uma citação em inglês que devia ter sido passada por alguém que conhecesse bem a língua antes de ser publicada (e não, não é lá por haver escritores anglófonos de renome que estraçalham a língua portuguesa quando tentam usá-la que nós podemos pagar-lhes na mesma moeda). Os motivos subjetivos prendem-se com o meu gosto pessoal que, como quem me lê com regularidade sabe bem, não vai nada à bola com histórias pulp que não tenham qualquer coisa que as eleve acima do que é normal nessa forma de conceber ficções. Esta até tem, mas não chega. Ou por outra: chega para que eu não a classifique como uma má história, mas não chega para que a ache boa.
Este livro foi-me fornecido pelo autor.
Nesta noveleta de Gabriel Bozano, carregada de ação e com uma pegada pulp muito evidente (o que, de resto, não deve ser caso único nesta série, bem pelo contrário), a intervenção alienígena vai alterar a história do Brasil mesmo no seu início enquanto estado independente quando aquele que na história verdadeira foi D. Pedro I, o primeiro imperador do Brasil, é abatido por uma arma de raios no preciso momento em que começa a dar o celebérrimo grito do Ipiranga. E como resultado surge uma linha histórica alternativa em que o Brasil se mantém colónia, sim, mas não de Portugal; da Inglaterra. Outro resultado é o desaparecimento do assassino; o primeiro paradoxo temporal a surgir na história... mas não o último.
Toma então a história uma feição bem próxima do steampunk clássico, pois de repente vemo-nos numa colónia inglesa em plena época vitoriana sem no entanto sairmos do Brasil, e até há tecnologias demasiado avançadas para a época e tudo. Aqui, o enredo torna-se ainda mais rocambolesco, envolvendo uma caçada a um pássaro gigante mais ou menos mitológico (parcialmente conduzida por pelo explorador Livingstone, nada menos), que não era bem o que parecia e a partir daí o enredo só fica mais enredado até ao fim.
Para quem gosta de histórias pulp rocambolescas, esta é um pratinho cheio. Apesar das múltiplas oportunidades para perder o fio à história, Bozano consegue amarrá-la razoavelmente bem e o final é realmente bom, rematando a história a contento e de uma forma puramente de ficção científica.
Mas nem tudo é satisfatório, por motivos objetivos e subjetivos. Pelo lado daqueles, a prosa não é a melhor, incluindo mesmo alguns erros dificilmente perdoáveis ("Há alguns metros dali", por exemplo), que demonstram a falta que faz uma revisão profissional, aqui inexistente, e incluindo também uma citação em inglês que devia ter sido passada por alguém que conhecesse bem a língua antes de ser publicada (e não, não é lá por haver escritores anglófonos de renome que estraçalham a língua portuguesa quando tentam usá-la que nós podemos pagar-lhes na mesma moeda). Os motivos subjetivos prendem-se com o meu gosto pessoal que, como quem me lê com regularidade sabe bem, não vai nada à bola com histórias pulp que não tenham qualquer coisa que as eleve acima do que é normal nessa forma de conceber ficções. Esta até tem, mas não chega. Ou por outra: chega para que eu não a classifique como uma má história, mas não chega para que a ache boa.
Este livro foi-me fornecido pelo autor.
Lido: A Lição de Inglês
Às vezes há contos enganadores. Ao abrir esta história de Maria Ondina Braga, de quem julgo só ter lido algumas histórias infantis na idade própria (e lembro-me vagamente de ter gostado) e um conto intitulado Estação Morta no ano passado, facilmente se julgaria estarmos perante uma história de terror. O ambiente está todo lá: noite escura e tempestuosa, telefonema misterioso vindo do nada, feito por uma mulher com umas tiradas que facilmente se poriam na conta de alguma espécie de fantasma ou demónio, por aí fora. Mas com o desenrolar do conto, essa impressão inicial vai-se desvanecendo no mundano de uma professora de inglês que é procurada por outra mulher que pretexta querer aprender a língua o quanto antes porque, ao que parece, houve um inglês que a fez sair da modorra insatisfatória de um casamento infeliz e a levou a querer partir para bem longe. A forma como Maria Ondina Braga vai tecendo os fios da narrativa dest'A Lição de Inglês é realmente boa, ainda que não seja difícil imaginar que um leitor particularmente apreciador das ficções sobrenaturais possa acabar por se sentir algo defraudado. Eu, que não sou grande fã de contos mundanos sobre relações amorosas, felizes ou infelizes, fiquei impressionado com essa faceta deste texto. Quanto ao resto, pareceu-me competente, mas não posso dizer que me tenha enchido as medidas. Questão de gosto pessoal.
Contos anteriores deste livro:
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terça-feira, 1 de agosto de 2017
Lido: Imaginários 1
Quando a Draco publicou em simultâneo este livrinho e o Imaginários 2 (que tem conto meu), certamente não estaria nos planos transformá-los numa série. No entanto, o sucesso comercial destas duas antologias levou a que fosse isso mesmo o que aconteceu, acabando por ser publicadas 5 entre 2009 e 2012. Fruto de uma iniciativa de Tibor Moricz, Saint-Clair Stockler e Eric Novello, todos eles escritores e todos com contos também no segundo volume (que inclui ainda histórias de mais três autores portugueses), que inicialmente era independente e só depois foi apoiada pela Draco, este Imaginários 1 (bibliografia) junta alguns dos autores mais relevantes da ficção especulativa brasileira, cada um em seu estilo, a dois ou três autores menos experientes.
O resultado é um pouco irregular, mas globalmente positivo. Farto-me de dizer que uma antologia vale a pena se incluir pelo menos um conto bom; pois esta inclui pelo menos dois contos excelentes, o da Martha Argel e o do Carlos Orsi, e vários outros contos entre o bom e o muito bom, acompanhados por alguns mais fracos. Vale, portanto, plenamente a pena.
Contrariamente ao que a capa poderia levar a crer, não se trata de uma antologia de fantasia. É uma antologia que contém fantasia, tal como contém ficção científica, horror e uma ou duas histórias mais difíceis de encaixotar. É variada, portanto, e também não tem tema comum. Há leitores que não gostam muito quando, num livro destes, cada conto é uma surpresa quase total, preferindo uma certa uniformidade temática ou de género. São gostos. Eu não me importo nada, desde que os contos sejam bons. E estes, na sua maioria, são. A antologia pode não ser mais que a soma das partes, o que por vezes acontece com as temáticas (o caso mais extremo é o desta antologia, muito mais do que a soma das partes) mas por vezes basta somar as partes para o resultado ser agradável. É o caso.
Eis o que achei dos contos individualmente considerados:
Este livro foi-me fornecido pela editora, em pagamento pelo meu conto publicado no Imaginários 2.
O resultado é um pouco irregular, mas globalmente positivo. Farto-me de dizer que uma antologia vale a pena se incluir pelo menos um conto bom; pois esta inclui pelo menos dois contos excelentes, o da Martha Argel e o do Carlos Orsi, e vários outros contos entre o bom e o muito bom, acompanhados por alguns mais fracos. Vale, portanto, plenamente a pena.
Contrariamente ao que a capa poderia levar a crer, não se trata de uma antologia de fantasia. É uma antologia que contém fantasia, tal como contém ficção científica, horror e uma ou duas histórias mais difíceis de encaixotar. É variada, portanto, e também não tem tema comum. Há leitores que não gostam muito quando, num livro destes, cada conto é uma surpresa quase total, preferindo uma certa uniformidade temática ou de género. São gostos. Eu não me importo nada, desde que os contos sejam bons. E estes, na sua maioria, são. A antologia pode não ser mais que a soma das partes, o que por vezes acontece com as temáticas (o caso mais extremo é o desta antologia, muito mais do que a soma das partes) mas por vezes basta somar as partes para o resultado ser agradável. É o caso.
Eis o que achei dos contos individualmente considerados:
Este livro foi-me fornecido pela editora, em pagamento pelo meu conto publicado no Imaginários 2.
Lido: O Quarto
De Herberto Helder esta antologia apresenta O Quarto, um conto razoavelmente curto, com subtis elementos fantásticos e surreais, que consiste basicamente de um diálogo mais ou menos platónico no qual o protagonista explica à outra personagem que planos tem para a sua própria morte. É uma história que explora a ideia de raízes e, de certa forma, a velha noção cristã de que "do pó viemos, ao pó voltaremos." Não vale grandemente a pena escalpelizar aqui as ideias contidas no conto; elas ficam bastante claras com a leitura, com exceção das religiosas, que são contraditórias, pelo menos à superfície: o protagonista primeiro afirma que não acredita em nada para na página seguinte se afirmar religioso. Isso, no entanto, é secundário. O mais importante é que se trata aqui da morte e da espécie de morte em vida que são as crescentes limitações, por vezes autoimpostas, que nos vão sobrecarregando à medida que avançamos em idade. De raízes. Do chamamento da Terra a que acabaremos inevitavelmente por ceder. Não é um conto particularmente agradável de ler. Mas é daqueles contos que nos deixam a pensar, pelo menos até voltarmos a ser distraídos pelas campainhas multicoloridas do mundo moderno.
Contos anteriores deste livro:
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