Henry Lien está presente nesta antologia com dois contos:
Pearl Rehabilitative Colony for Ungrateful Daughters é um divertido conto carregadinho de referências à cultura chinesa e aos filmes de artes marciais, contado na primeira pessoa por uma adolescente filha de pais ultrarricos, chamada Suki Jiang que, segundo afirma logo a abrir, prefere ser tratada como "Sua Graça, Radiante Deusa-Princesa Suki," e se vê internada, a grande contragosto, numa colónia de reabilitação cujo nome é o título da história. A reabilitação parece consistir quase exclusivamente de treinos de artes marciais futuristas, nas quais a protagonista se mostra imbatível. Ou quase. É que tem uma rival. E é a história dessa rivalidade e dos vários embates e competições que faz mover o conto. Tudo muito chinês, tudo francamente irónico, tudo muito divertido (a adolescência, e em particular a adolescência feminina, sai daqui bastante maltratada), mas sem grande profundidade. O conto não é nada de superlativo, mas não deixa de ser uma olhadela engraçada, interessante e até de certa forma original sobre a cultura chinesa.
Supplemental Declaration of Henry Lien é outro conto irónico, consistindo este de uma declaração legal relativa a um fideicomisso a que Lien teria ficado ligado por morte do seu amante, que envolve comunicações com o falecido por via onírica e todos os enredos legais que esse tipo de coisa tende a gerar. Também é um conto divertido, também é um conto algo superficial, também é uma abordagem com a sua originalidade mas, dos dois, preferi o primeiro.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
domingo, 13 de dezembro de 2015
Lido: Contos a Oeste
Contos a Oeste (bibliografia), de Ana Cristina Luz, é uma pequena coletânea de cinco histórias próximas do realismo mágico e do horror sobrenatural, todas marcadamente românticas, que oscilam entre o fraco e o bom, ainda que o mais frequente é serem razoáveis, incluindo tanto aspetos interessantes e bem conseguidos como fragilidades mais ou menos óbvias.
O conjunto, no entanto, é superior à soma das partes, porque há uma unidade nestas histórias que não é norma encontrar nas compilações de contos, mesmo as de autor único. Há em todos eles uma certa doçura, uma aura romântica, mulheres solitárias em busca de amor ou à sua espera, e há em todos eles o ideal feminino do amante misterioso, transbordante de charme mas mais ou menos inalcançável. Essa unidade melhora a qualidade do livro, reconheço, mas devo dizer que o lugar de onde ela vem também piora a sua adequação ao meu gosto pessoal. Poucas coisas me enchem mais de tédio do que histórias românticas deste género; acho-as demasiado banais, cheias de chavões utilizados em milhares de livrinhos cor-de-rosa sofregamente consumidos por um público quase exclusivamente feminino. Não tenho paciência, em suma.
Mas para quem gosta, este livro poderá ser uma leitura agradável. Não creio que muita gente o chegue a considerar bom, mas poderá ser agradável para muita gente. E, como digo com frequência, basta um bom conto para se justificar uma publicação, e este livro contém um bom conto.
Eis o que achei das cinco histórias de que ele se compõe:
Este livro foi comprado.
O conjunto, no entanto, é superior à soma das partes, porque há uma unidade nestas histórias que não é norma encontrar nas compilações de contos, mesmo as de autor único. Há em todos eles uma certa doçura, uma aura romântica, mulheres solitárias em busca de amor ou à sua espera, e há em todos eles o ideal feminino do amante misterioso, transbordante de charme mas mais ou menos inalcançável. Essa unidade melhora a qualidade do livro, reconheço, mas devo dizer que o lugar de onde ela vem também piora a sua adequação ao meu gosto pessoal. Poucas coisas me enchem mais de tédio do que histórias românticas deste género; acho-as demasiado banais, cheias de chavões utilizados em milhares de livrinhos cor-de-rosa sofregamente consumidos por um público quase exclusivamente feminino. Não tenho paciência, em suma.
Mas para quem gosta, este livro poderá ser uma leitura agradável. Não creio que muita gente o chegue a considerar bom, mas poderá ser agradável para muita gente. E, como digo com frequência, basta um bom conto para se justificar uma publicação, e este livro contém um bom conto.
Eis o que achei das cinco histórias de que ele se compõe:
Este livro foi comprado.
sábado, 12 de dezembro de 2015
Lido: O Tempo do Impossível
O Tempo do Impossível (bibliografia) é um romance de ficção científica de John D. MacDonald, já bastante velhinho (data de 1951), que no entanto continua a funcionar bem hoje em dia, muito por ser uma espécie de Philip K. Dick antes de Dick.
Há livros que mostram com completa clareza que muito na obra de um autor, mesmo quando este é dos melhores, tem a ver com o momento cultural específico de onde ele brota. Este é um desses livros. Teria Dick lido este romance de MacDonald? Tê-lo-ia influenciado? É possível. Mas é igualmente provável que não, que os temas e abordagens que Dick explorou mais tarde com a qualidade que universalmente se lhe reconhece estivessem simplesmente à espera de ser aproveitados, como que flutuando no caldo cultural da época.
Explorá-los é também o que John D. MacDonald faz neste livro, que conta como um tal Dake Lorin, jovem jornalista promissor, vê a sua vida virada de pantanas por investigar o que não deve e que leva muito tempo a compreender. Com uma qualidade literária invulgar nos romances de ficção científica da época, este livro começa como uma espécie de thriller vagamente policial, vagamente de espionagem, ainda que se passe num futuro mais ou menos longínquo (ainda que muito semelhante, em muitas coisas, com os anos 50 do século passado) relativamente à época em que foi escrito, no qual as tensões internacionais parecem aproximar-se de um ponto de rotura que poderá levar a uma terceira guerra mundial.
Dick entrevê-se a cada virar de página. A natureza alucinatória da realidade, aqui deturpada por um grupo de pessoas (serão pessoas? Talvez o sejam) dotadas de capacidades telepáticas e capazes de implantar ilusões em cérebros desprotegidos, o homem sozinho que luta obstinadamente contra forças muito mais fortes do que ele e que mal compreende, ou não compreende de todo, a grande conspiração maligna (ou será benigna? Uma mistura das duas coisas, talvez?) cujo objetivo é dominar o mundo (só esse?), tudo isto, que tão fulcral veio a ser mais tarde nas melhores ficções dickianas, é também fulcral neste romance.
E as reviravoltas no enredo, nunca nada ser exatamente o que parece, os aliados que afinal são adversários e vice-versa, todos os pequenos pormenores aparentemente insignificantes que mais tarde se vêm a revelar importantes e que tornam tão difícil que se fale das histórias por tanto nelas depender das surpresas com que o leitor vai deparando no avançar da trama. Tudo isto, que é ingrediente em O Tempo do Impossível, é também profundamente dickiano.
Este é um romance sobre um homem em busca do seu lugar no mundo e, acima de tudo, de respostas sobre a natureza desse mundo. Algo com que muitos leitores se identificarão sem grande dificuldade, tanto hoje como nos anos 50, mesmo que as suas circunstâncias pouco tenham a ver com as extraordinárias circunstâncias do protagonista desta história. É também um romance que reflete com uma profundidade bastante razoável sobre o conflito, a sua natureza e as suas consequências, o que ele tem de mau mas também o que traz de bom. É um romance com ideias dentro, o que nem sempre se pode dizer desta forma literária a que muitos gostam de chamar a literatura das ideias (como se as outras não as tivessem também). É um romance que consegue não ser particularmente machista, o que é um feito para a FC escrita, por homens, na época. Tudo somado, portanto, é um bom romance. Não um romance excelente, talvez, mas um bom romance.
Este livro foi comprado.
Há livros que mostram com completa clareza que muito na obra de um autor, mesmo quando este é dos melhores, tem a ver com o momento cultural específico de onde ele brota. Este é um desses livros. Teria Dick lido este romance de MacDonald? Tê-lo-ia influenciado? É possível. Mas é igualmente provável que não, que os temas e abordagens que Dick explorou mais tarde com a qualidade que universalmente se lhe reconhece estivessem simplesmente à espera de ser aproveitados, como que flutuando no caldo cultural da época.
Explorá-los é também o que John D. MacDonald faz neste livro, que conta como um tal Dake Lorin, jovem jornalista promissor, vê a sua vida virada de pantanas por investigar o que não deve e que leva muito tempo a compreender. Com uma qualidade literária invulgar nos romances de ficção científica da época, este livro começa como uma espécie de thriller vagamente policial, vagamente de espionagem, ainda que se passe num futuro mais ou menos longínquo (ainda que muito semelhante, em muitas coisas, com os anos 50 do século passado) relativamente à época em que foi escrito, no qual as tensões internacionais parecem aproximar-se de um ponto de rotura que poderá levar a uma terceira guerra mundial.
Dick entrevê-se a cada virar de página. A natureza alucinatória da realidade, aqui deturpada por um grupo de pessoas (serão pessoas? Talvez o sejam) dotadas de capacidades telepáticas e capazes de implantar ilusões em cérebros desprotegidos, o homem sozinho que luta obstinadamente contra forças muito mais fortes do que ele e que mal compreende, ou não compreende de todo, a grande conspiração maligna (ou será benigna? Uma mistura das duas coisas, talvez?) cujo objetivo é dominar o mundo (só esse?), tudo isto, que tão fulcral veio a ser mais tarde nas melhores ficções dickianas, é também fulcral neste romance.
E as reviravoltas no enredo, nunca nada ser exatamente o que parece, os aliados que afinal são adversários e vice-versa, todos os pequenos pormenores aparentemente insignificantes que mais tarde se vêm a revelar importantes e que tornam tão difícil que se fale das histórias por tanto nelas depender das surpresas com que o leitor vai deparando no avançar da trama. Tudo isto, que é ingrediente em O Tempo do Impossível, é também profundamente dickiano.
Este é um romance sobre um homem em busca do seu lugar no mundo e, acima de tudo, de respostas sobre a natureza desse mundo. Algo com que muitos leitores se identificarão sem grande dificuldade, tanto hoje como nos anos 50, mesmo que as suas circunstâncias pouco tenham a ver com as extraordinárias circunstâncias do protagonista desta história. É também um romance que reflete com uma profundidade bastante razoável sobre o conflito, a sua natureza e as suas consequências, o que ele tem de mau mas também o que traz de bom. É um romance com ideias dentro, o que nem sempre se pode dizer desta forma literária a que muitos gostam de chamar a literatura das ideias (como se as outras não as tivessem também). É um romance que consegue não ser particularmente machista, o que é um feito para a FC escrita, por homens, na época. Tudo somado, portanto, é um bom romance. Não um romance excelente, talvez, mas um bom romance.
Este livro foi comprado.
Lido: The Secret Lives of Rick and Peggy
The Secret Lives of Rick and Peggy é outro continho pseudofactual de Jeff VanderMeer que, à semelhança do anterior, conta vidas secretas. E este é muito divertido, especialmente para quem conhece bem os fandom da FC e da fantasia. De um fantástico bem lovecraftiano, Rick e Peggy levam ambos vidas ocultas um do outro; o primeiro é, secretamente, um maluquinho por Lovecraft, tendo como missão vital corrigir tudo e todos os que se atrevam a falar mal do seu ídolo, incluindo um tal Jeff VanderMeer que terá andado a publicar patetices sobre o senhor Howard Philips na Locus Online. Já a Peggy... bem, digamos apenas que a Peggy sabe bem demais que o que Lovecraft escreveu não é propriamente ficção.
Sim, é verdade, não gosto de pseudofactuais. Mas, pseudofactual ou não, este continho de página e meia é uma delícia.
Textos anteriores deste livro:
Sim, é verdade, não gosto de pseudofactuais. Mas, pseudofactual ou não, este continho de página e meia é uma delícia.
Textos anteriores deste livro:
sexta-feira, 11 de dezembro de 2015
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Samantha Kymmell-Harvey
Com Samantha Kymmell-Harvey esta antologia regressa aos contos, intitulando-se o dela:
Cadence. É uma história interessante de fantasia, passada nos tempos do Império Austro-Húngaro, protagonizada por um par de irmãos, músicos e nacionalistas húngaros, que capturam uma rusalka para a utilizarem numa conspiração para assassinarem o imperador austro-húngaro e assim alcançarem a liberdade da sua pátria. O leitor lusófono típico tem desculpa por não saber o que diabo vem a ser uma rusalka, uma vez que não há grandes contactos entre as nossas culturas e as eslavas, de onde essas criaturas mitológicas são originárias. Trata-se de ninfas aquáticas que, pelo menos neste conto (as características variam um pouco), são capazes de capturarem a vontade dos homens através do canto, levando-os à morte. Uma espécie de sereias, portanto.
Pois aqui é esse o fulcro da história. Esta vai acompanhando a evolução dos preparativos para o ataque, os seus avanços e recuos, e também os avanços e recuos na relação entre a rusalka e os seus captores.
Apesar de não me ter propriamente enchido as medidas, esta história é, como disse, interessante e teve o mérito adicional de apresentar um tipo de criatura mitológica de origem distinta das habituais grega, germânico-escandinava e anglo-saxónica, tão predominantes na fantasia de língua inglesa. É uma boa história, bem escrita e concebida e concluída de forma inteligente.
Cadence. É uma história interessante de fantasia, passada nos tempos do Império Austro-Húngaro, protagonizada por um par de irmãos, músicos e nacionalistas húngaros, que capturam uma rusalka para a utilizarem numa conspiração para assassinarem o imperador austro-húngaro e assim alcançarem a liberdade da sua pátria. O leitor lusófono típico tem desculpa por não saber o que diabo vem a ser uma rusalka, uma vez que não há grandes contactos entre as nossas culturas e as eslavas, de onde essas criaturas mitológicas são originárias. Trata-se de ninfas aquáticas que, pelo menos neste conto (as características variam um pouco), são capazes de capturarem a vontade dos homens através do canto, levando-os à morte. Uma espécie de sereias, portanto.
Pois aqui é esse o fulcro da história. Esta vai acompanhando a evolução dos preparativos para o ataque, os seus avanços e recuos, e também os avanços e recuos na relação entre a rusalka e os seus captores.
Apesar de não me ter propriamente enchido as medidas, esta história é, como disse, interessante e teve o mérito adicional de apresentar um tipo de criatura mitológica de origem distinta das habituais grega, germânico-escandinava e anglo-saxónica, tão predominantes na fantasia de língua inglesa. É uma boa história, bem escrita e concebida e concluída de forma inteligente.
Lido: Contos Guerra
Contos Guerra é mais uma das pequenas antologias que a Rosto produziu em 2011 para serem distribuídas com o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias. Desta feita o tema é a guerra, ou pelo menos o ambiente militar, e a antologia compõe-se apenas de dois contos, bastante diferentes um do outro, sem que nenhum deles seja particularmente apelativo para o leitor que aqui os leu, em parte por méritos e deméritos próprios, em parte por dificuldades de tradução.
O conjunto é, portanto, dos mais fracos entre estas antologiazinhas, e a junção destas duas histórias nada faz para elevar o livrinho a algo mais do que a mera soma das partes. É um livrinho razoável, que se lê por vezes com um certo interesse, mas disso não passa.
Eis o que achei das duas histórias:
Este livro foi comprado.
O conjunto é, portanto, dos mais fracos entre estas antologiazinhas, e a junção destas duas histórias nada faz para elevar o livrinho a algo mais do que a mera soma das partes. É um livrinho razoável, que se lê por vezes com um certo interesse, mas disso não passa.
Eis o que achei das duas histórias:
Este livro foi comprado.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
Lido: Nemonymous Two
Este é o número 2 da revista Nemonymous que, para quem não conhece, foi uma peculiar revista inglesa que conheceu vários formatos mas nesta fase inicial se caracterizava por publicar as histórias anonimamente, sendo os autores de cada uma revelados apenas quando estava prestes a sair o número seguinte (e alguns nunca chegaram a ser revelados).
Consoante a forma como se conta, este número inclui 17 ou 18 contos, quase todos do bom para cima, e mesmo os dois ou três mais fracos nunca chegam a descer abaixo do razoável mais. O nível médio é, portanto, invulgarmente alto. Quase todas as histórias se integram em uma ou outra vertente das literaturas do imaginário, ainda que uma ou duas o façam de uma forma algo cosmética. As restantes oscilam na sua maioria entre o surrealismo, a werd fiction, o fantástico propriamente dito e o horror, por vezes com uma dose significativa de humor a apimentá-las. Todas, e sim, aqui incluem-se aquelas que por um motivo ou por outro me agradaram menos, mostram um cuidado literário bastante elevado.
Uma das coisas mais curiosas nesta publicação, que aliás a eleva a mais do que a mera soma das partes que é hábito encontrar-se em revistas, é notar-se nela uma espécie de fio condutor implícito, como que fantasmagórico até. Isto apesar de toda a variedade das histórias de que se compõe. Ou seja, apesar de as histórias nada terem a ver umas com as outras, pelo menos à primeira vista, a sua reunião é de tal forma harmoniosa que o todo funciona um pouco como um jogo de tetris bem jogado: as peças podem ser díspares, em forma e em cor, mas encaixam-se numa perfeição quase perfeita.
Mas, claro, as partes não se dissolvem nesse todo, e cada uma vale por si. Eis, portanto, o que achei dos contos individualmente considerados:
Consoante a forma como se conta, este número inclui 17 ou 18 contos, quase todos do bom para cima, e mesmo os dois ou três mais fracos nunca chegam a descer abaixo do razoável mais. O nível médio é, portanto, invulgarmente alto. Quase todas as histórias se integram em uma ou outra vertente das literaturas do imaginário, ainda que uma ou duas o façam de uma forma algo cosmética. As restantes oscilam na sua maioria entre o surrealismo, a werd fiction, o fantástico propriamente dito e o horror, por vezes com uma dose significativa de humor a apimentá-las. Todas, e sim, aqui incluem-se aquelas que por um motivo ou por outro me agradaram menos, mostram um cuidado literário bastante elevado.
Uma das coisas mais curiosas nesta publicação, que aliás a eleva a mais do que a mera soma das partes que é hábito encontrar-se em revistas, é notar-se nela uma espécie de fio condutor implícito, como que fantasmagórico até. Isto apesar de toda a variedade das histórias de que se compõe. Ou seja, apesar de as histórias nada terem a ver umas com as outras, pelo menos à primeira vista, a sua reunião é de tal forma harmoniosa que o todo funciona um pouco como um jogo de tetris bem jogado: as peças podem ser díspares, em forma e em cor, mas encaixam-se numa perfeição quase perfeita.
Mas, claro, as partes não se dissolvem nesse todo, e cada uma vale por si. Eis, portanto, o que achei dos contos individualmente considerados:
- Climbing the Tallest Tree in the World
- Mighty Fine Days
- The Assistant to Dr Jacob
- Buffet Freud
- Ice Age
- The Vanishing Life and Films of Emmanuel Escobada
- Berenice's Journal
- Showcase
- Eyes Like Water Like Ice
- Earthworks
- Striped Pajamas
- The Drowned
- Adult Books
- Nothing
- The Secret
- A Spot of Tea
- White Dream
- Four Minutes Thirty Three Seconds
Lido: A Cigarra e a Formiga
A Cigarra e a Formiga é um conto curto de W. Somerset Maugham que se inspira na célebre fábula para contar uma história de dois irmãos que se comportam como os bicharocos da história tradicional. Um, trabalhador, tem no afinco e no juízo o esteio da sua existência; já o outro é um estroina, passando a vista em festas e servindo-se de um charme muito seu para deslizar pelo mundo entre um amigo ou um familiar e o próximo, sem mexer uma palha, cravando tudo a toda a gente, vivendo de dívida em dívida com a maior das descontrações. O desfecho é divertido. Ou talvez deprimente. Ou talvez cínico. Maughan como que nos diz que o mundo não é, propriamente, o lugar mais justo que é possível imaginar. Coisa que já todos sabíamos, com certeza, mas que aqui surge sublinhada. O conto é mais uma vez bom, com uma profundidade bem superior à leveza com que vem escrito e um final que, não sendo propriamente surpreendente, é no entanto muito adequado.
Contos anteriores deste livro:
Contos anteriores deste livro:
terça-feira, 8 de dezembro de 2015
Lido: Ghostgirl - A Rapariga Invisível
Ghostgirl - A Rapariga Invisível (bibliografia) é um romance juvenil, escrito por Tonya Hurley, claramente a pensar em ser lido por meninas, sobre uma miúda que morre na escola e se transforma em fantasma.
Quem já tenha visto aqueles filmecos ou seriezecas americanas sobre o ambiente dos liceus lá do sítio fica desde logo com uma boa ideia do que vai encontrar aqui. Quem já tenha lido as brandas histórias fantasmagóricas de Ray Bradbury, com os seus jovens protagonistas, fica também com uma noção razoavelmente concreta, embora Bradbury seja um escritor incomparavelmente melhor do que Hurley é e provavelmente alguma vez será.
A história está, portanto, repleta de elementos já vistos em outros sítios e pode ser descrita de forma rápida e popularucha como Gossip Girl meets The Addams Family. Não é nada o meu género, como quem costuma ler este blog facilmente compreenderá, mas por isso mesmo procurei dar ao livro um certo desconto.
No entanto, não foi suficiente. Embora a tradução pareça ter até melhorado a prosa da autora (é raro, mas desta vez, precisamente por isto estar tão longe dos meus gostos, tive curiosidade de ir ver o que as leitoras que em princípio se enquadrariam no público-alvo do romance tinham a dizer sobre ele, e foram várias as que se queixaram amargamente da fraca qualidade da escrita quando a da versão portuguesa nem é particularmente má), o facto é que a protagonista é de tal forma insuportável, e o enredo é de tal maneira pateta, que não houve desconto que bastasse para eu achar o livro minimamente aceitável.
A história gira em volta de Charlotte Usher (óbvia e ronronante piscadela de olho a Poe, ou até talvez também a Bradbury), uma loser de uns 15 ou 16 anos de idade, cuja única ambição na vida é ser popular e namorar um tal Damen, o gajo giro da turma, obviamente burro e atleta. Duh!, não é? Pois. Para isso, faz uns planos desastrados e acaba primeiro rechaçada e depois morta, quando um ursinho de goma se lhe aloja na garganta e a sufoca pateticamente à vista de toda a gente. Devia ter acabado aí a história, mas não: a dita Charlotte vira fantasma, ficando ainda mais obcecada pelo tal Damon, enquanto se vê transferida do liceu dos vivos para o liceu dos mortos, instalado nos recôncavos abandonados do liceu, onde estudam (bem... mais ou menos) todos os fantasmas da escola.
Segue-se uma série de peripécias, todas motivadas pela imparável vontade de a recém-fantasma se enrolar com o gajo, mas há uma chatice: ninguém a consegue ver. Ninguém, calma lá. Há uma rapariga que consegue, obviamente a gótica lá do sítio. Isto é clichés em cima de clichés numa periclitante torre inclinada. E lá vai a fantasminha travar amizade interesseira com a gótica, acabando por possuí-la e tudo (em possessão pura e fantasmagórica, seus mal intencionados, só essa), só para se aproximar do Damen que, claro, acaba por se revelar mais sensível do que parecia à partida. Toca em fundo uma boyband qualquer tum-tss-tum-tss-tum.
Tudo muito, muito tolo.
Mas a verdade é que, se bem me lembro dos meus tempos de secundária, há mesmo teens deste género, nas tintas para tudo a não ser os gajos giros que lhes passam pelo radar. Suponho que essas possam achar este livro divertido ou até talvez, quem sabe, bom. Qualquer pessoa que tenha nem que seja uma unha feminista, no entanto, deve achá-lo perfeitamente lamentável. Eu li até ao fim porque sou teimoso nas leituras e as coisas têm de ser invulgarmente péssimas para as deixar a meio. Este livro não é invulgarmente péssimo, isso não é. Mas é mau. Não o aconselharia a ninguém.
Este livro foi-me enviado pela editora, numa oferta não solicitada (que me surpreendeu bastante, diga-se de passagem).
Quem já tenha visto aqueles filmecos ou seriezecas americanas sobre o ambiente dos liceus lá do sítio fica desde logo com uma boa ideia do que vai encontrar aqui. Quem já tenha lido as brandas histórias fantasmagóricas de Ray Bradbury, com os seus jovens protagonistas, fica também com uma noção razoavelmente concreta, embora Bradbury seja um escritor incomparavelmente melhor do que Hurley é e provavelmente alguma vez será.
A história está, portanto, repleta de elementos já vistos em outros sítios e pode ser descrita de forma rápida e popularucha como Gossip Girl meets The Addams Family. Não é nada o meu género, como quem costuma ler este blog facilmente compreenderá, mas por isso mesmo procurei dar ao livro um certo desconto.
No entanto, não foi suficiente. Embora a tradução pareça ter até melhorado a prosa da autora (é raro, mas desta vez, precisamente por isto estar tão longe dos meus gostos, tive curiosidade de ir ver o que as leitoras que em princípio se enquadrariam no público-alvo do romance tinham a dizer sobre ele, e foram várias as que se queixaram amargamente da fraca qualidade da escrita quando a da versão portuguesa nem é particularmente má), o facto é que a protagonista é de tal forma insuportável, e o enredo é de tal maneira pateta, que não houve desconto que bastasse para eu achar o livro minimamente aceitável.
A história gira em volta de Charlotte Usher (óbvia e ronronante piscadela de olho a Poe, ou até talvez também a Bradbury), uma loser de uns 15 ou 16 anos de idade, cuja única ambição na vida é ser popular e namorar um tal Damen, o gajo giro da turma, obviamente burro e atleta. Duh!, não é? Pois. Para isso, faz uns planos desastrados e acaba primeiro rechaçada e depois morta, quando um ursinho de goma se lhe aloja na garganta e a sufoca pateticamente à vista de toda a gente. Devia ter acabado aí a história, mas não: a dita Charlotte vira fantasma, ficando ainda mais obcecada pelo tal Damon, enquanto se vê transferida do liceu dos vivos para o liceu dos mortos, instalado nos recôncavos abandonados do liceu, onde estudam (bem... mais ou menos) todos os fantasmas da escola.
Segue-se uma série de peripécias, todas motivadas pela imparável vontade de a recém-fantasma se enrolar com o gajo, mas há uma chatice: ninguém a consegue ver. Ninguém, calma lá. Há uma rapariga que consegue, obviamente a gótica lá do sítio. Isto é clichés em cima de clichés numa periclitante torre inclinada. E lá vai a fantasminha travar amizade interesseira com a gótica, acabando por possuí-la e tudo (em possessão pura e fantasmagórica, seus mal intencionados, só essa), só para se aproximar do Damen que, claro, acaba por se revelar mais sensível do que parecia à partida. Toca em fundo uma boyband qualquer tum-tss-tum-tss-tum.
Tudo muito, muito tolo.
Mas a verdade é que, se bem me lembro dos meus tempos de secundária, há mesmo teens deste género, nas tintas para tudo a não ser os gajos giros que lhes passam pelo radar. Suponho que essas possam achar este livro divertido ou até talvez, quem sabe, bom. Qualquer pessoa que tenha nem que seja uma unha feminista, no entanto, deve achá-lo perfeitamente lamentável. Eu li até ao fim porque sou teimoso nas leituras e as coisas têm de ser invulgarmente péssimas para as deixar a meio. Este livro não é invulgarmente péssimo, isso não é. Mas é mau. Não o aconselharia a ninguém.
Este livro foi-me enviado pela editora, numa oferta não solicitada (que me surpreendeu bastante, diga-se de passagem).
sábado, 5 de dezembro de 2015
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Francis Knight
Francis Knight é mais um dos autores presentes na antologia com um excerto de romance que, no seu caso, tem de título
Fade to Black. Trata-se de um romance de algo que poderia ser caracterizado como fantasia noir. Ambientado numa cidade que parece construída em cima de si própria, estendendo-se verticalmente entre as zonas ricas, no topo, à luz, e as partes pobres, sujas e (mortalmente) poluídas nas profundezas, uma cidade muito bem caracterizada, muito sólida, cheia de textura, a fazer lembrar um pouco os ambientes de China Miéville, tem como protagonista uma espécie de detetive privado mágico, com o típico cinismo e desprezo pelas regras dos private eyes do policial negro, mas com poderes. Alguns.
Tudo muito bem escrito, muito bem descrito, muito credível. Este foi um excerto que me deixou decididamente a querer mais. O livro completo pode não sustentar até ao fim a qualidade aqui patente, pode não ser tão bom como aparenta, pode até ter defeitos graves que só se revelam no resto. Mas se for tudo como estas páginas indicam podemos estar perante um ótimo livro.
Fade to Black. Trata-se de um romance de algo que poderia ser caracterizado como fantasia noir. Ambientado numa cidade que parece construída em cima de si própria, estendendo-se verticalmente entre as zonas ricas, no topo, à luz, e as partes pobres, sujas e (mortalmente) poluídas nas profundezas, uma cidade muito bem caracterizada, muito sólida, cheia de textura, a fazer lembrar um pouco os ambientes de China Miéville, tem como protagonista uma espécie de detetive privado mágico, com o típico cinismo e desprezo pelas regras dos private eyes do policial negro, mas com poderes. Alguns.
Tudo muito bem escrito, muito bem descrito, muito credível. Este foi um excerto que me deixou decididamente a querer mais. O livro completo pode não sustentar até ao fim a qualidade aqui patente, pode não ser tão bom como aparenta, pode até ter defeitos graves que só se revelam no resto. Mas se for tudo como estas páginas indicam podemos estar perante um ótimo livro.
Lido: A Cidade do Céu
A Cidade do Céu (bibliografia) é um romance de ficção científica de Curt Siodmak sobre uma espécie de pequena guerra em órbita terrestre. E não é um mau romance, embora também não seja bom. Porquê?
Começa logo por ser prejudicado por uma ideia base disparatada: a de que a melhor forma para a Terra (que aqui é retratada como um lugar que continua a ter as suas intensas tensões internacionais, mas no entanto consegue um grau de cooperação suficiente para grandes projetos globais) se livrar de criminosos particularmente perigosos, ou pelo menos particularmente incómodos, é encerrá-los numa estação espacial em órbita. É uma ideia com amplo pedigree, pois o desterro foi usado por quase todas as potências coloniais do passado mais ou menos recente e há até países inteiros que lhe devem a existência, mas a verdade é que os desterrados dispunham quase sempre, nos locais de desterro, de alguma forma de prover localmente à sua subsistência, total ou parcialmente, não estando dependentes para tudo de produtos enviados da metrópole. Não é o que acontece em órbita, tanto nas várias estações espaciais que temos tido na vida real, como em quase todas estas estações de ficção: tudo tem de ser levado da Terra, o que faz com que a manutenção de prisioneiros em órbita seja um disparate tão monumental como os custos que algo assim teria.
Mas a cidade do céu a que o título se refere não é a prisão orbital. É outra estação espacial, muito maior, gerida como um empreendimento turístico de ultraluxo e chamada Cidade Internacional do Céu (CIC). Esta faz mais sentido, o que já contribui para o romance não ser mau. Mas o que mais contribui para isso é Siodmak ter conseguido criar uma história com o seu interesse, envolvendo uma revolta e fuga na prisão orbital (cheia de perigosíssimos criminosos, mas também de presos políticos) e a invasão da CIC por parte dos revoltosos, com a consequente tomada de alguns dos mais valiosos reféns do mundo e arredores. Melhor: em vez de se ficar por um mero enredo de ação à Hollywood, Siodmak aproveita para introduzir aqui e ali algumas reflexões com algum interesse sobre a liberdade e o poder. Nada de muito profundo, naturalmente, que não se quer estragar uma história movimentada com intelectualices, mas é sempre agradável quando os autores recusam reduzir tudo à banalidade maniqueísta do costume.
Trata-se, portanto, de uma história razoável, já um pouco datada mas ainda aceitável enquanto ficção científica de um futuro não muito distante, que seria bem mais verosímil sem a tolice de colocar uma prisão em órbita mas que, na verdade, só com ela funciona. É um busílis, que no entanto teria sido possível solucionar de outra forma. Uma prisão espacial faria sentido, por exemplo, para criminosos demasiado adaptados à vida em órbita para poderem ser levados em segurança para o planeta, ou então como módulo isolado de uma estação espacial muito maior e autossuficiente. Siodmak teria podido, portanto, fazer uma história melhor com estes ingredientes. É pena que não a tenha feito.
Ah, sim, e há uma personagem portuguesa. Coisa rara. Mas não rejubilemos: é um tipo insuportável, vá-se lá saber porquê.
Este livro foi comprado.
Começa logo por ser prejudicado por uma ideia base disparatada: a de que a melhor forma para a Terra (que aqui é retratada como um lugar que continua a ter as suas intensas tensões internacionais, mas no entanto consegue um grau de cooperação suficiente para grandes projetos globais) se livrar de criminosos particularmente perigosos, ou pelo menos particularmente incómodos, é encerrá-los numa estação espacial em órbita. É uma ideia com amplo pedigree, pois o desterro foi usado por quase todas as potências coloniais do passado mais ou menos recente e há até países inteiros que lhe devem a existência, mas a verdade é que os desterrados dispunham quase sempre, nos locais de desterro, de alguma forma de prover localmente à sua subsistência, total ou parcialmente, não estando dependentes para tudo de produtos enviados da metrópole. Não é o que acontece em órbita, tanto nas várias estações espaciais que temos tido na vida real, como em quase todas estas estações de ficção: tudo tem de ser levado da Terra, o que faz com que a manutenção de prisioneiros em órbita seja um disparate tão monumental como os custos que algo assim teria.
Mas a cidade do céu a que o título se refere não é a prisão orbital. É outra estação espacial, muito maior, gerida como um empreendimento turístico de ultraluxo e chamada Cidade Internacional do Céu (CIC). Esta faz mais sentido, o que já contribui para o romance não ser mau. Mas o que mais contribui para isso é Siodmak ter conseguido criar uma história com o seu interesse, envolvendo uma revolta e fuga na prisão orbital (cheia de perigosíssimos criminosos, mas também de presos políticos) e a invasão da CIC por parte dos revoltosos, com a consequente tomada de alguns dos mais valiosos reféns do mundo e arredores. Melhor: em vez de se ficar por um mero enredo de ação à Hollywood, Siodmak aproveita para introduzir aqui e ali algumas reflexões com algum interesse sobre a liberdade e o poder. Nada de muito profundo, naturalmente, que não se quer estragar uma história movimentada com intelectualices, mas é sempre agradável quando os autores recusam reduzir tudo à banalidade maniqueísta do costume.
Trata-se, portanto, de uma história razoável, já um pouco datada mas ainda aceitável enquanto ficção científica de um futuro não muito distante, que seria bem mais verosímil sem a tolice de colocar uma prisão em órbita mas que, na verdade, só com ela funciona. É um busílis, que no entanto teria sido possível solucionar de outra forma. Uma prisão espacial faria sentido, por exemplo, para criminosos demasiado adaptados à vida em órbita para poderem ser levados em segurança para o planeta, ou então como módulo isolado de uma estação espacial muito maior e autossuficiente. Siodmak teria podido, portanto, fazer uma história melhor com estes ingredientes. É pena que não a tenha feito.
Ah, sim, e há uma personagem portuguesa. Coisa rara. Mas não rejubilemos: é um tipo insuportável, vá-se lá saber porquê.
Este livro foi comprado.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Marko Kloos
Marko Kloos é mais um autor presente nesta antologia com um excerto de romance. O dele intitula-se:
Terms of Enlistment. Trata-se, aparentemente, de um romance de ficção científica militar, protagonizado por um jovem pobre que se alista para fugir à completa falta de perspetivas de futuro que a sua sociedade lhe oferece, sabendo que o seu destino é a guerra algures, numa terra distante, contra soldados de uma Aliança Sino-Russa tão arrancados às raízes como ele. O ambiente, já se percebeu, é muito distópico, fazendo lembrar um pouco o de 1984 de Orwell, ainda que o protagonista tenha mais a ver com o de Guerra Sempre, de Haldeman. As referências são boas e, talvez em parte por isso, o resultado tem potencial para ser bastante bom, o que é reforçado por uma prosa competente, ainda que, naturalmente, só o desenvolvimento da história poderia confirmar, ou não, esse potencial. Seja como for, este excerto cumpriu o seu propósito: deixou-me curioso pelo livro completo.
Terms of Enlistment. Trata-se, aparentemente, de um romance de ficção científica militar, protagonizado por um jovem pobre que se alista para fugir à completa falta de perspetivas de futuro que a sua sociedade lhe oferece, sabendo que o seu destino é a guerra algures, numa terra distante, contra soldados de uma Aliança Sino-Russa tão arrancados às raízes como ele. O ambiente, já se percebeu, é muito distópico, fazendo lembrar um pouco o de 1984 de Orwell, ainda que o protagonista tenha mais a ver com o de Guerra Sempre, de Haldeman. As referências são boas e, talvez em parte por isso, o resultado tem potencial para ser bastante bom, o que é reforçado por uma prosa competente, ainda que, naturalmente, só o desenvolvimento da história poderia confirmar, ou não, esse potencial. Seja como for, este excerto cumpriu o seu propósito: deixou-me curioso pelo livro completo.
Lido: A Loucura de Deus
A Loucura de Deus (bibliografia) é um romance de Juan Miguel Aguilera que, no que toca ao género, vai estendendo pseudópodes para aqui e para ali. Com um núcleo ancorado ao horror, é também em parte romance de viagem, em parte romance de aventuras, em parte romance fantástico, em parte história secreta e em parte romance de ficção científica. E tem a ver connosco, embora só de forma algo enviesada.
O tempo é o início do século XIV, época em que Portugal desfrutava de um período de relativa paz, entre o fim da Reconquista e o início da expansão ultramarina, mas o vizinho reino de Castela ainda batalhava os árabes de Granada. Mas também era a época em que, no Médio Oriente, os muçulmanos estavam prestes a reconquistar todos os territórios capturados pelas Cruzadas de séculos anteriores, o que levava muitos, no Ocidente, a sonhar com o auxílio de um reino cristão mítico e, segundo constava, extremamente poderoso, em cuja busca também os nossos navegadores mergulharam um século mais tarde: o reino de Prestes João.
É uma dessas buscas que este livro conta. Um grupo de mercenários cristãos, liderado por um velho erudito catalão, Ramón Llull (que existiu mesmo), vai seguindo o rasto de algo que eles julgavam ser o reino de Prestes João, desde a Ásia Menor (atual Turquia), onde se envolvem nas lutas de poder e nas guerras dos sultanatos locais, até mais para Leste, mergulhando nas vastas estepes e desertos da Ásia Central.
E é aí que (tentando eu agora fazer um mínimo de spoilers, mas sem me ser possível evitá-los por completo; estão avisados), depois de uma longa viagem, cheia de perigos, o menor dos quais não terá sido uma estranha raça de criaturas aparentemente subumanas, talvez demoníacas, talvez outra coisa mais diferente, que parecem determinadas a agir o mais depravadamente que lhes é possível (a que Aguilera chama gog, nome que é dado na Bíblia aos povos nómadas da Ásia Central), o acaba por encontrar.
De certa forma.
Pois o "reino de Prestes João" que Llull encontra não é, nem de perto, nem de longe, aquele que esperava.
Trata-se, sim, de uma cidade isolada chamada Ápeiron (palavra grega que significa "indefinido"), de certa forma reminiscente de muitas das descrições da capital da Atlântida. Uma cidade habitada por descendentes de gregos clássicos, onde o desenvolvimento da ciência e da filosofia gregas não foi interrompido por guerras e invasões, mas prosseguiu séculos fora, sem impedimentos. Uma cidade, portanto, muitíssimo avançada para o século XIV, com um nível tecnológico próximo do que temos hoje, e que, naturalmente, enche Llull e os mercenários que o acompanham de assombro e não pouco temor. E é aqui que este livro namorisca a ficção científica. Aqui, e não só.
É que a cidade está em guerra, ameaçada de invasão. Porque há um motivo para se ter escondido no deserto, longe dos olhares do mundo, um motivo que está intimamente ligado a um certo tipo de horror cósmico mais ou menos lovecraftiano, em que antiquíssimas, misteriosas, provavelmente malignas e ultrapoderosas criaturas alienígenas conspiram para dirigir a seu bel-prazer a história e o destino humanos. Llull e os seus mercenários que, ao contrário dos pacíficos habitantes da cidade, são guerreiros experimentados, são recrutados primeiro para a defender e depois para levar a guerra ao couto do Adversário.
Aí, num lugar algures bem a Norte, vão deparar com um vastíssimo poço onde pulula uma vida grotesca que por mais que uma vez me fez lembrar as visões infernais de Hyeronimus Bosch e outras visões iniciáticas. Ao descê-lo, vão ter o enfrentamento final com o Adversário que remata o romance em plena apoteose de violência.
Trata-se, como se vê, de um romance carregado de referências, muitíssimo bem pesquisado e em geral bem amarrado, que procura, julgo que conscientemente, subverter as fronteiras entre os géneros, o que consegue de forma plena. Um romance bastante bom, portanto. Os únicos defeitos que lhe aponto são uma certa irregularidade no ritmo narrativo e alguma colagem excessiva da tradução ao castelhano original, algo que, aparentemente, é difícil de evitar. Será de as línguas serem tão próximas e portanto ser mais difícil detetar a contaminação? Da pouca experiência dos tradutores dada a relativa escassez de traduções portuguesas de obras originalmente escritas em espanhol? Não faço ideia. Mas não é a primeira vez que encontro, em livros vindos da língua de nuestros hermanos, um certo tom acastelhanizado que destoa das palavras portuguesas do texto. É pena. Mas mesmo assim, este livro vale plenamente o tempo despendido na sua leitura.
Este livro foi comprado.
O tempo é o início do século XIV, época em que Portugal desfrutava de um período de relativa paz, entre o fim da Reconquista e o início da expansão ultramarina, mas o vizinho reino de Castela ainda batalhava os árabes de Granada. Mas também era a época em que, no Médio Oriente, os muçulmanos estavam prestes a reconquistar todos os territórios capturados pelas Cruzadas de séculos anteriores, o que levava muitos, no Ocidente, a sonhar com o auxílio de um reino cristão mítico e, segundo constava, extremamente poderoso, em cuja busca também os nossos navegadores mergulharam um século mais tarde: o reino de Prestes João.
É uma dessas buscas que este livro conta. Um grupo de mercenários cristãos, liderado por um velho erudito catalão, Ramón Llull (que existiu mesmo), vai seguindo o rasto de algo que eles julgavam ser o reino de Prestes João, desde a Ásia Menor (atual Turquia), onde se envolvem nas lutas de poder e nas guerras dos sultanatos locais, até mais para Leste, mergulhando nas vastas estepes e desertos da Ásia Central.
E é aí que (tentando eu agora fazer um mínimo de spoilers, mas sem me ser possível evitá-los por completo; estão avisados), depois de uma longa viagem, cheia de perigos, o menor dos quais não terá sido uma estranha raça de criaturas aparentemente subumanas, talvez demoníacas, talvez outra coisa mais diferente, que parecem determinadas a agir o mais depravadamente que lhes é possível (a que Aguilera chama gog, nome que é dado na Bíblia aos povos nómadas da Ásia Central), o acaba por encontrar.
De certa forma.
Pois o "reino de Prestes João" que Llull encontra não é, nem de perto, nem de longe, aquele que esperava.
Trata-se, sim, de uma cidade isolada chamada Ápeiron (palavra grega que significa "indefinido"), de certa forma reminiscente de muitas das descrições da capital da Atlântida. Uma cidade habitada por descendentes de gregos clássicos, onde o desenvolvimento da ciência e da filosofia gregas não foi interrompido por guerras e invasões, mas prosseguiu séculos fora, sem impedimentos. Uma cidade, portanto, muitíssimo avançada para o século XIV, com um nível tecnológico próximo do que temos hoje, e que, naturalmente, enche Llull e os mercenários que o acompanham de assombro e não pouco temor. E é aqui que este livro namorisca a ficção científica. Aqui, e não só.
É que a cidade está em guerra, ameaçada de invasão. Porque há um motivo para se ter escondido no deserto, longe dos olhares do mundo, um motivo que está intimamente ligado a um certo tipo de horror cósmico mais ou menos lovecraftiano, em que antiquíssimas, misteriosas, provavelmente malignas e ultrapoderosas criaturas alienígenas conspiram para dirigir a seu bel-prazer a história e o destino humanos. Llull e os seus mercenários que, ao contrário dos pacíficos habitantes da cidade, são guerreiros experimentados, são recrutados primeiro para a defender e depois para levar a guerra ao couto do Adversário.
Aí, num lugar algures bem a Norte, vão deparar com um vastíssimo poço onde pulula uma vida grotesca que por mais que uma vez me fez lembrar as visões infernais de Hyeronimus Bosch e outras visões iniciáticas. Ao descê-lo, vão ter o enfrentamento final com o Adversário que remata o romance em plena apoteose de violência.
Trata-se, como se vê, de um romance carregado de referências, muitíssimo bem pesquisado e em geral bem amarrado, que procura, julgo que conscientemente, subverter as fronteiras entre os géneros, o que consegue de forma plena. Um romance bastante bom, portanto. Os únicos defeitos que lhe aponto são uma certa irregularidade no ritmo narrativo e alguma colagem excessiva da tradução ao castelhano original, algo que, aparentemente, é difícil de evitar. Será de as línguas serem tão próximas e portanto ser mais difícil detetar a contaminação? Da pouca experiência dos tradutores dada a relativa escassez de traduções portuguesas de obras originalmente escritas em espanhol? Não faço ideia. Mas não é a primeira vez que encontro, em livros vindos da língua de nuestros hermanos, um certo tom acastelhanizado que destoa das palavras portuguesas do texto. É pena. Mas mesmo assim, este livro vale plenamente o tempo despendido na sua leitura.
Este livro foi comprado.
terça-feira, 1 de dezembro de 2015
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Daniel L. Kimmel
Daniel L. Kimmel é outro autor presente na antologia com um excerto de romance. No seu caso, o romance intitula-se
Shh! It’s a Secret: a novel about Aliens, Hollywood, and the Bartender’s Guide. Sim, a sério. Trata-se, como o título indica com a máxima clareza, de um romance de ficção científica humorística que parece ter uma premissa semelhante à da velha sit-com do Alf, ainda que sem vontade de devorar gatos à mistura. Um ET, filho do embaixador de uma espécie alienígena chamada Brogardi, que responde por Abi Gezunt, resolve que há de tentar fazer uma carreira em Hollywood e é provisoriamente acolhido em casa do (muito renitente) relações públicas do estúdio. O que se segue é o expectável manancial de gags e incompreensões resultantes dos desajustamentos culturais, alimentares e específicos entre o ET e a família de acolhimento.
Tendo também eu escrito um livro mais ou menos deste género, sei por experiência própria que o mais difícil é fazer com que a coisa mantenha a graça ao longo de todo o livro, e isso é impossível aferir num excerto. E também gerir questões de gosto. E este livro de Kimmel não parece ser muito do meu gosto: pelo excerto, pareceu-me demasiado americano, demasiado hollywoodesco, demasiado doméstico para me agradar mesmo. Li-o com um sorrisinho, mas só. Desconfio que acabaria por me cansar do livro bem antes do fim.
Mas, claro, isto é só desconfiança. Não há quaisquer certezas. Ou por outra, há uma: o excerto não me despertou grande vontade de ler o resto. Acontece.
Shh! It’s a Secret: a novel about Aliens, Hollywood, and the Bartender’s Guide. Sim, a sério. Trata-se, como o título indica com a máxima clareza, de um romance de ficção científica humorística que parece ter uma premissa semelhante à da velha sit-com do Alf, ainda que sem vontade de devorar gatos à mistura. Um ET, filho do embaixador de uma espécie alienígena chamada Brogardi, que responde por Abi Gezunt, resolve que há de tentar fazer uma carreira em Hollywood e é provisoriamente acolhido em casa do (muito renitente) relações públicas do estúdio. O que se segue é o expectável manancial de gags e incompreensões resultantes dos desajustamentos culturais, alimentares e específicos entre o ET e a família de acolhimento.
Tendo também eu escrito um livro mais ou menos deste género, sei por experiência própria que o mais difícil é fazer com que a coisa mantenha a graça ao longo de todo o livro, e isso é impossível aferir num excerto. E também gerir questões de gosto. E este livro de Kimmel não parece ser muito do meu gosto: pelo excerto, pareceu-me demasiado americano, demasiado hollywoodesco, demasiado doméstico para me agradar mesmo. Li-o com um sorrisinho, mas só. Desconfio que acabaria por me cansar do livro bem antes do fim.
Mas, claro, isto é só desconfiança. Não há quaisquer certezas. Ou por outra, há uma: o excerto não me despertou grande vontade de ler o resto. Acontece.
Lido: A Mendiga
A Mendiga é mais um dos muito curtos contos de juventude de Mário de Sá-Carneiro, este ainda mais curto do que os outros, e também mais desinspirado. Conto de um trágico bastante banal, bastante faca e alguidar, pinta em rápidas e superficiais pinceladas o fim de vida de uma mendiga e a generalizada indiferença que esse fim causa. Do Sá-Carneiro posterior só aqui se encontra a morbidez; de resto, este é um conto de escritor hesitante, ainda à procura de voz e, neste caso, sem chegar a encontrá-la. Bastante fraco.
Contos anteriores deste livro:
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segunda-feira, 30 de novembro de 2015
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Joy Kennedy-O'Neill
Joy Kennedy-O'Neill está presente nesta antologia com um único texto, uma noveleta intitulada
Aftermath. Trata-se de uma abordagem de ficção científica ao tema dos zombies, numa história não linear que saltita entre um presente em que uma sociedade americana profundamente alterada e dividida entre aqueles que nunca adoeceram e os que sobreviveram ao vírus zombificante tenta lentamente recuperar do cataclismo epidémico, e vários episódios do passado em que se vai contando o progressivo mergulho no caos. O fulcro de tudo é o trauma. O trauma, sobretudo, dos que nunca adoeceram e por isso de tudo se lembram, vendo-se agora confrontados com uma escolha entre esquecer e recordar, entre guardarem ressentimento por aquilo que viram os doentes (tantas vezes gente próxima; amigos, vizinhos, família) fazer e perdoar, por todos os crimes, por todas as desumanidades (dos quais os que adoeceram nem se recordam) terem sido causadas por uma doença.
Não sendo nenhum zénite de originalidade, pois há desde sempre laços fortes entre as histórias de zombies e a ficção científica baseada em epidemias apocalípticas, esta noveleta está no entanto muito bem conseguida e termina de uma forma particularmente forte. É, portanto, boa. Bastante boa.
Aftermath. Trata-se de uma abordagem de ficção científica ao tema dos zombies, numa história não linear que saltita entre um presente em que uma sociedade americana profundamente alterada e dividida entre aqueles que nunca adoeceram e os que sobreviveram ao vírus zombificante tenta lentamente recuperar do cataclismo epidémico, e vários episódios do passado em que se vai contando o progressivo mergulho no caos. O fulcro de tudo é o trauma. O trauma, sobretudo, dos que nunca adoeceram e por isso de tudo se lembram, vendo-se agora confrontados com uma escolha entre esquecer e recordar, entre guardarem ressentimento por aquilo que viram os doentes (tantas vezes gente próxima; amigos, vizinhos, família) fazer e perdoar, por todos os crimes, por todas as desumanidades (dos quais os que adoeceram nem se recordam) terem sido causadas por uma doença.
Não sendo nenhum zénite de originalidade, pois há desde sempre laços fortes entre as histórias de zombies e a ficção científica baseada em epidemias apocalípticas, esta noveleta está no entanto muito bem conseguida e termina de uma forma particularmente forte. É, portanto, boa. Bastante boa.
Lido: A Loja Mágica
A Loja Mágica (bibliografia) é um conto de fantasia de H. G. Wells que descreve, com evidente gozo e bom humor, a visita de um pai acompanhado por um filho que, como todas as crianças, assim reza a lenda romântica da infância, é fascinado por coisas de maravilha e magia, a uma loja localizada numa rua de Londres (suspeita-se) que vende aqueles artigos que é comum encontrar-se nos espetáculos de prestidigitação. No entanto, esta loja não é como as outras. Não é por acaso que a história se intitula A Loja Mágica (o nome da própria loja) e não A Loja de Magia. Sim, a própria loja, bem como tudo o que contém, é mágica. Nada de meros truques mecânicos, nada de ilusões. Magia.
É um bom conto, e divertido, embora esteja a certa distância de oferecer grandes surpresas a quem o lê. A ideia tem sido tão explorada, por tantos autores, que os caminhos que aqui percorre estão bem batidos. Mas esta história já é mais que centenária, à época os caminhos estavam ainda bem mais virgens, e portanto isso tem um impacto limitado sobre a sua qualidade. E, de resto, ela mantém-se hoje tão bem escrita, bem construída e divertida como em 1903.
Contos anteriores deste livro:
É um bom conto, e divertido, embora esteja a certa distância de oferecer grandes surpresas a quem o lê. A ideia tem sido tão explorada, por tantos autores, que os caminhos que aqui percorre estão bem batidos. Mas esta história já é mais que centenária, à época os caminhos estavam ainda bem mais virgens, e portanto isso tem um impacto limitado sobre a sua qualidade. E, de resto, ela mantém-se hoje tão bem escrita, bem construída e divertida como em 1903.
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sexta-feira, 2 de outubro de 2015
Aqui vota-se
Por todos os motivos e mais alguns.
Desde o mais simples, o da urgência de afastar do poder o grupo de bufarinheiros sem palavra nem caráter que nele têm estado instalados, incapazes de dizer duas palavras seguidas sem que uma delas seja mentira, que deixam o meu país muito, mas muito pior do que o encontraram, mais pobre, mais despovoado, muito mais desigual, muito mais incapaz de resistir a choques internos e externos a que possa estar sujeito, com uma massa imensa de cidadãos a viver muito pior ou a ter de abandonar casa e família para conseguirem sobreviver lá fora ao mesmo tempo que gera dez mil novos milionários, e esta frase poderia prolongar-se durante páginas e páginas a listar todas as malfeitorias que esta abjeta direita nos causou durante quatro anos, mas não vale a pena, já toda a gente as conhece (com a exceção, claro, de quem mantém a fé em São Coelho como quem reza aos pastorinhos de Fátima ou vai votar da mesma forma estúpida e irracional com que se apoia um clube de futebol), e além disso há por aí muito quem não goste de frases saramaguianamente longas e não convém aborrecer demasiado essa malta.
Passando por nestes 41 anos de democracia nos terem tantas e tantas vezes cantado ao ouvido a cantilena do "olha que se não ganhamos nós ganham os outros bandidos," do "vê lá bem, não tens medo?," do "pensa bem, que nós nem precisamos de mostrar que valemos alguma coisa para saberes que eles, os outros, são piores," e no entanto o voto dito útil nunca ter servido para nada além de nos trazer até ao lindo estado em que nos encontramos, o que, se pensarmos bem, tem toda a lógica, porque quando substituimos sistematicamente o bem maior pelo mal menor acabamos por ficar com uma sequência de males menores nas mãos que se multiplicam até se transformarem no desastre que está à vista.
E acabando em serem do Bloco aquelas que, a meu ver, são as melhores propostas, as propostas mais consistentes, mais baseadas nas realidades da crise e no que os últimos anos nos ensinaram, tanto nacional como internacionalmente, propostas que, não sendo perfeitas, possivelmente nem sequer sendo todas realizáveis numa legislatura, em especial quando entramos em conta com o miserável estado em que está a União Europeia de todas as desilusões, que cada vez mais parece fazer absoluta questão de esquecer as lições que um século XX assassino devia ter deixado gravadas em pedra e aço (e sangue, litros e litros de sangue) no consciente coletivo dos povos europeus, trazem no entanto consigo a garantia de que haverá quem lute por elas, quem procure por todos os meios levá-las a cabo, quem não desista, baixe os braços e resigne, à espera de miríficas intervenções mais ou menos divinas, e que terá tanto mais força para essa luta quanto maior o poder que os votos lhe conferirem.
Nem sempre acontece, mesmo sendo aderente (bem, neste momento até sou um pouco — e é mesmo pouco — mais do que isso), mas desta vez voto Bloco sem a mais pequena sombra de dúvida. Especialmente depois de ver o partido fazer algo que há muito defendo (aqui, por exemplo): propostas muito claras (e muitíssimo acertadas, acrescento) sobre as condições em que participaria de alguma forma numa solução de governo, mostrando-se aberto a convergências e a ação comum, desde que respeitando alguns princípios básicos, coisa que, infelizmente, não vejo em outras forças políticas, que pelos vistos preferem os silêncios, as não respostas ou os enunciados vagos que tanto podem querer dizer sim como talvez como sopas.
Portanto, no domingo, irei votar no Bloco com um gosto e uma certeza que há muito não tinha. E mais: convido-vos a todos a vir comigo, chova ou faça sol, haja muito ou pouco que fazer durante as horas de urnas abertas.
Vamos lá, malta. Vamos lá dar a volta a isto.
Desde o mais simples, o da urgência de afastar do poder o grupo de bufarinheiros sem palavra nem caráter que nele têm estado instalados, incapazes de dizer duas palavras seguidas sem que uma delas seja mentira, que deixam o meu país muito, mas muito pior do que o encontraram, mais pobre, mais despovoado, muito mais desigual, muito mais incapaz de resistir a choques internos e externos a que possa estar sujeito, com uma massa imensa de cidadãos a viver muito pior ou a ter de abandonar casa e família para conseguirem sobreviver lá fora ao mesmo tempo que gera dez mil novos milionários, e esta frase poderia prolongar-se durante páginas e páginas a listar todas as malfeitorias que esta abjeta direita nos causou durante quatro anos, mas não vale a pena, já toda a gente as conhece (com a exceção, claro, de quem mantém a fé em São Coelho como quem reza aos pastorinhos de Fátima ou vai votar da mesma forma estúpida e irracional com que se apoia um clube de futebol), e além disso há por aí muito quem não goste de frases saramaguianamente longas e não convém aborrecer demasiado essa malta.
Passando por nestes 41 anos de democracia nos terem tantas e tantas vezes cantado ao ouvido a cantilena do "olha que se não ganhamos nós ganham os outros bandidos," do "vê lá bem, não tens medo?," do "pensa bem, que nós nem precisamos de mostrar que valemos alguma coisa para saberes que eles, os outros, são piores," e no entanto o voto dito útil nunca ter servido para nada além de nos trazer até ao lindo estado em que nos encontramos, o que, se pensarmos bem, tem toda a lógica, porque quando substituimos sistematicamente o bem maior pelo mal menor acabamos por ficar com uma sequência de males menores nas mãos que se multiplicam até se transformarem no desastre que está à vista.
E acabando em serem do Bloco aquelas que, a meu ver, são as melhores propostas, as propostas mais consistentes, mais baseadas nas realidades da crise e no que os últimos anos nos ensinaram, tanto nacional como internacionalmente, propostas que, não sendo perfeitas, possivelmente nem sequer sendo todas realizáveis numa legislatura, em especial quando entramos em conta com o miserável estado em que está a União Europeia de todas as desilusões, que cada vez mais parece fazer absoluta questão de esquecer as lições que um século XX assassino devia ter deixado gravadas em pedra e aço (e sangue, litros e litros de sangue) no consciente coletivo dos povos europeus, trazem no entanto consigo a garantia de que haverá quem lute por elas, quem procure por todos os meios levá-las a cabo, quem não desista, baixe os braços e resigne, à espera de miríficas intervenções mais ou menos divinas, e que terá tanto mais força para essa luta quanto maior o poder que os votos lhe conferirem.
Nem sempre acontece, mesmo sendo aderente (bem, neste momento até sou um pouco — e é mesmo pouco — mais do que isso), mas desta vez voto Bloco sem a mais pequena sombra de dúvida. Especialmente depois de ver o partido fazer algo que há muito defendo (aqui, por exemplo): propostas muito claras (e muitíssimo acertadas, acrescento) sobre as condições em que participaria de alguma forma numa solução de governo, mostrando-se aberto a convergências e a ação comum, desde que respeitando alguns princípios básicos, coisa que, infelizmente, não vejo em outras forças políticas, que pelos vistos preferem os silêncios, as não respostas ou os enunciados vagos que tanto podem querer dizer sim como talvez como sopas.
Portanto, no domingo, irei votar no Bloco com um gosto e uma certeza que há muito não tinha. E mais: convido-vos a todos a vir comigo, chova ou faça sol, haja muito ou pouco que fazer durante as horas de urnas abertas.
Vamos lá, malta. Vamos lá dar a volta a isto.
domingo, 20 de setembro de 2015
Lido: Manga Verde e o Sal Também
Manga Verde e o Sal Também é uma historinha de Ondjaki sobre vingança. Muito longe de ser das histórias mais interessantes deste livro, conta como, um belo dia, os miúdos da família do protagonista decidem fazer um festim de manga verde com sal à revelia dos adultos, para o que já tinham apanhado as mangas da árvore e alguém teria de ir surripiar o sal. Mas um aviso bem intencionado é recebido com uma resposta torta, os adultos chegam e põem-se a fazer perguntas e o pequeno Ndalu abre o saco das respostas.
Esta é capaz de ter sido a historieta que menos me agradou até ao momento.
Contos anteriores deste livro:
Esta é capaz de ter sido a historieta que menos me agradou até ao momento.
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sábado, 19 de setembro de 2015
Lido: O Gato Negro
O Gato Negro (bibliografia) é mais um conto de terror de Edgar Allan Poe que, de tão reconhecido, encontra lugar na maioria das compilações de contos do autor americano. Portanto já o tinha lido e falado sobre ele, claro. Alertando para a existência de revelações sobre o enredo, indico que essa opinião está aqui, sob um título levemente diferente do desta.
O leitor que sou hoje é menos entusiasta do que o Jorge de há cinco anos, embora continue a reconhecer ao conto toda a qualidade e relevância. É que este conto, para funcionar em pleno, precisa do lento desvendar da história, de que esta ainda não seja conhecida por quem lê. E cinco anos não foram suficientes para me roubar a memória do conto, o que teve como consequência que esta leitura tenha sido acompanhada por bastante menos interesse no que chegaria ao virar da página. Não que o conto deixe de funcionar em releitura, como acontece por vezes. Mas não funciona por inteiro. Falta-lhe a emoção da descoberta.
Contos anteriores deste livro:
O leitor que sou hoje é menos entusiasta do que o Jorge de há cinco anos, embora continue a reconhecer ao conto toda a qualidade e relevância. É que este conto, para funcionar em pleno, precisa do lento desvendar da história, de que esta ainda não seja conhecida por quem lê. E cinco anos não foram suficientes para me roubar a memória do conto, o que teve como consequência que esta leitura tenha sido acompanhada por bastante menos interesse no que chegaria ao virar da página. Não que o conto deixe de funcionar em releitura, como acontece por vezes. Mas não funciona por inteiro. Falta-lhe a emoção da descoberta.
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Lido: The Secret Life of Allen Lewis
The Secret Life of Allen Lewis (primeiro de um conjunto de quatro contos que constituem excerto de uma coletânea) é um continho de Jeff VanderMeer que relata, num muito borgesiano estilo pseudofactual, aquilo que o título indica: a vida secreta de Allen Lewis, sacerdote episcopaliano. Não sou grande apreciador dos pseudofactuais, que têm os seus fãs e os seus cultores (e VanderMeer é um dos modernos; Rhys Hughes é outro) e que são indubitavelmente uma forma inteiramente válida de fazer literatura. Eu é que não gosto muito. Dito isto, este texto de pouco mais de uma página está muito bem escrito e é divertido e vagamente fantástico, o que, na minha mundovisão literária, são logo três motivos de interesse.
Texto anterior deste livro:
Texto anterior deste livro:
Lido: Aquele Sol Poente
Aquele Sol Poente, de William Faulkner, é um belíssimo conto, que narra a história de Nancy, uma negra no muito racista Sul dos Estados Unidos numa época em que, embora já tivesse deixado para as páginas de história os anos da escravatura, continuava a fazer coincidir negro com miserável e empregado do patrão branco. Isto, de resto, continua a ser verdade hoje em dia, embora não de forma tão absoluta como na época retratada nesta história, o início do século XX.
Nancy é lavadeira de uma família branca numa cidade chamada Jefferson (há várias no Sul dos EUA, mas provavelmente será a da Louisiana, pois é a mais próxima do espaço geográfico em que Faulkner viveu, embora pouco passe de uma vila. Ou então é ficcional), posta a fazer outros serviços porque a cozinheira da família (também negra, claro) adoeceu. Mas Nancy tem uma vida complicada, dificultada ainda mais por um homem que a enlouquece de terror apesar de ter desaparecido. Ou talvez precisamente porque desapareceu, deixando atrás de si ameaças por concretizar.
É esse terror que serve de esteio à história, esse terror e as interações entre ela e a família. O que torna o conto especial é ser contado sob o ponto de vista dos filhos da família branca, que pouco ou nada compreendem do que se está a passar. Vemos tudo distorcido pelos olhos deles, como quem olha o mundo pelo fundo de uma garrafa de inocência, e é só isso que torna suportável a indiferença com que quase toda a gente reage aos terrores da mulher, por muitos vistos como simples "coisas de negros". E também é isso que acentua o terror, através do contraste com as brincadeiras normalmente alegres dos miúdos.
É nestas pequenas-grandes opções que se distinguem os grandes escritores dos que não chegam lá. Faulkner foi um grande escritor; basta este conto para o compreender.
Conto anterior deste livro:
Nancy é lavadeira de uma família branca numa cidade chamada Jefferson (há várias no Sul dos EUA, mas provavelmente será a da Louisiana, pois é a mais próxima do espaço geográfico em que Faulkner viveu, embora pouco passe de uma vila. Ou então é ficcional), posta a fazer outros serviços porque a cozinheira da família (também negra, claro) adoeceu. Mas Nancy tem uma vida complicada, dificultada ainda mais por um homem que a enlouquece de terror apesar de ter desaparecido. Ou talvez precisamente porque desapareceu, deixando atrás de si ameaças por concretizar.
É esse terror que serve de esteio à história, esse terror e as interações entre ela e a família. O que torna o conto especial é ser contado sob o ponto de vista dos filhos da família branca, que pouco ou nada compreendem do que se está a passar. Vemos tudo distorcido pelos olhos deles, como quem olha o mundo pelo fundo de uma garrafa de inocência, e é só isso que torna suportável a indiferença com que quase toda a gente reage aos terrores da mulher, por muitos vistos como simples "coisas de negros". E também é isso que acentua o terror, através do contraste com as brincadeiras normalmente alegres dos miúdos.
É nestas pequenas-grandes opções que se distinguem os grandes escritores dos que não chegam lá. Faulkner foi um grande escritor; basta este conto para o compreender.
Conto anterior deste livro:
Lido: Ladislau Ventura
Ladislau Ventura é outro continho de uma página de Mário de Sá-Carneiro que, à semelhança do anterior, também tem muito de estudo de personagem. Mas este é mais do que isso. Não só conta uma história, os comos e os porquês de Ladislau Ventura, escritor titubeante, desejoso de subir à ribalta literária, mas impedido de o fazer por um sistema que lhe diz que não, acabar por pôr termo à vida, como o faz de uma forma carregadinha de uma ironia corrosiva que tem como alvo o modo como funcionava o meio literário daquele tempo (o conto é de 1908).
Mas que digo? Daquele tempo? Não. O modo como funciona o meio artístico ainda hoje; quantas vezes vimos já, na literatura, na música ou em outras formas artísticas, que é a morte a trazer um sucesso que a vida tão frequentemente renega? É esse o tema deste conto, que também é um aviso precoce das decisões que o autor viria a tomar alguns anos mais tarde.
Se achei Maria Augusta medíocre, neste conto encontrei muitos mais motivos de interesse. Melhor até que o primeiro.
Contos anteriores deste livro:
Mas que digo? Daquele tempo? Não. O modo como funciona o meio artístico ainda hoje; quantas vezes vimos já, na literatura, na música ou em outras formas artísticas, que é a morte a trazer um sucesso que a vida tão frequentemente renega? É esse o tema deste conto, que também é um aviso precoce das decisões que o autor viria a tomar alguns anos mais tarde.
Se achei Maria Augusta medíocre, neste conto encontrei muitos mais motivos de interesse. Melhor até que o primeiro.
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sexta-feira, 18 de setembro de 2015
Lido: O Ovo de Cristal
O Ovo de Cristal (bibliografia) é um conto de ficção científica de H. G. Wells, que constitui uma espécie de prequela do seu célebre romance A Guerra dos Mundos. Tudo gira em volta de um estranho cristal em forma de ovo, que um vendedor de antiguidades e quinquilharias teria para vender, barato, mas de repente passa a resistir a fazê-lo, subindo exorbitantemente o preço por motivos que a princípio ninguém consegue descortinar. Com tudo muito envolto em secretismo, o leitor (mas não a maior parte das pessoas que o rodeiam) vai sendo informado a pouco e pouco de que a razão da mudança de atitude para com o objeto foi o comerciante ter reparado que dele provinha, sob certas circunstâncias, uma estranha luminosidade. O conto relata-nos a investigação, levada a cabo pelo comerciante e por um conhecido seu, jovem homem de ciência, que vai acabar por revelar um outro mundo, inteiramente desconhecido e habitado por criaturas bizarras, embora de certa forma semelhantes ao Homem. Já imaginam que mundo é esse, claro: Marte.
O conto é bom, mas melhor se torna para quem leu antes o romance marciano de Wells e consegue fazer a ligação entre uma obra e a outra, pois assim o conto ganha um grau de ameaça, um tom agoirento, que, sozinho, não tem. Muito interessante mesmo.
Contos anteriores deste livro:
O conto é bom, mas melhor se torna para quem leu antes o romance marciano de Wells e consegue fazer a ligação entre uma obra e a outra, pois assim o conto ganha um grau de ameaça, um tom agoirento, que, sozinho, não tem. Muito interessante mesmo.
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Lido: Os Quedes Vermelhos da Tchi
Os Quedes Vermelhos da Tchi é mais um continho de infância de Ondjaki, e este é francamente bom. Conta, da forma suave e ternurenta que já vai sendo habitual, a participação do seu jovem protagonista nas celebrações oficiais do 1º de Maio, numa Luanda muito mergulhada nos rituais do bloco socialista. Mas, num segundo nível de leitura, é também uma muito subtil tomada de posição política, que se serve dos sapatos (os quedes são uma espécie de sapato) para fazer alusão ao clima político da época, pois o jovem vai, feliz e contente, participar na festa levando os sapatos vermelhos da irmã, apesar de estes lhe estarem apertados e lhe magoarem os pés. A sublinhar essa leitura, o conto fecha com um parágrafo de três palavras: "Antigamente, eu ia." Só isto.
Esta é uma historinha mais complexa que a maioria das restantes, e por isso mesmo, parece-me, melhor.
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Esta é uma historinha mais complexa que a maioria das restantes, e por isso mesmo, parece-me, melhor.
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