sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Lido: A Loucura de Deus

A Loucura de Deus (bibliografia) é um romance de Juan Miguel Aguilera que, no que toca ao género, vai estendendo pseudópodes para aqui e para ali. Com um núcleo ancorado ao horror, é também em parte romance de viagem, em parte romance de aventuras, em parte romance fantástico, em parte história secreta e em parte romance de ficção científica. E tem a ver connosco, embora só de forma algo enviesada.

O tempo é o início do século XIV, época em que Portugal desfrutava de um período de relativa paz, entre o fim da Reconquista e o início da expansão ultramarina, mas o vizinho reino de Castela ainda batalhava os árabes de Granada. Mas também era a época em que, no Médio Oriente, os muçulmanos estavam prestes a reconquistar todos os territórios capturados pelas Cruzadas de séculos anteriores, o que levava muitos, no Ocidente, a sonhar com o auxílio de um reino cristão mítico e, segundo constava, extremamente poderoso, em cuja busca também os nossos navegadores mergulharam um século mais tarde: o reino de Prestes João.

É uma dessas buscas que este livro conta. Um grupo de mercenários cristãos, liderado por um velho erudito catalão, Ramón Llull (que existiu mesmo), vai seguindo o rasto de algo que eles julgavam ser o reino de Prestes João, desde a Ásia Menor (atual Turquia), onde se envolvem nas lutas de poder e nas guerras dos sultanatos locais, até mais para Leste, mergulhando nas vastas estepes e desertos da Ásia Central.

E é aí que (tentando eu agora fazer um mínimo de spoilers, mas sem me ser possível evitá-los por completo; estão avisados), depois de uma longa viagem, cheia de perigos, o menor dos quais não terá sido uma estranha raça de criaturas aparentemente subumanas, talvez demoníacas, talvez outra coisa mais diferente, que parecem determinadas a agir o mais depravadamente que lhes é possível (a que Aguilera chama gog, nome que é dado na Bíblia aos povos nómadas da Ásia Central), o acaba por encontrar.

De certa forma.

Pois o "reino de Prestes João" que Llull encontra não é, nem de perto, nem de longe, aquele que esperava.

Trata-se, sim, de uma cidade isolada chamada Ápeiron (palavra grega que significa "indefinido"), de certa forma reminiscente de muitas das descrições da capital da Atlântida. Uma cidade habitada por descendentes de gregos clássicos, onde o desenvolvimento da ciência e da filosofia gregas não foi interrompido por guerras e invasões, mas prosseguiu séculos fora, sem impedimentos. Uma cidade, portanto, muitíssimo avançada para o século XIV, com um nível tecnológico próximo do que temos hoje, e que, naturalmente, enche Llull e os mercenários que o acompanham de assombro e não pouco temor. E é aqui que este livro namorisca a ficção científica. Aqui, e não só.

É que a cidade está em guerra, ameaçada de invasão. Porque há um motivo para se ter escondido no deserto, longe dos olhares do mundo, um motivo que está intimamente ligado a um certo tipo de horror cósmico mais ou menos lovecraftiano, em que antiquíssimas, misteriosas, provavelmente malignas e ultrapoderosas criaturas alienígenas conspiram para dirigir a seu bel-prazer a história e o destino humanos. Llull e os seus mercenários que, ao contrário dos pacíficos habitantes da cidade, são guerreiros experimentados, são recrutados primeiro para a defender e depois para levar a guerra ao couto do Adversário.

Aí, num lugar algures bem a Norte, vão deparar com um vastíssimo poço onde pulula uma vida grotesca que por mais que uma vez me fez lembrar as visões infernais de Hyeronimus Bosch e outras visões iniciáticas. Ao descê-lo, vão ter o enfrentamento final com o Adversário que remata o romance em plena apoteose de violência.

Trata-se, como se vê, de um romance carregado de referências, muitíssimo bem pesquisado e em geral bem amarrado, que procura, julgo que conscientemente, subverter as fronteiras entre os géneros, o que consegue de forma plena. Um romance bastante bom, portanto. Os únicos defeitos que lhe aponto são uma certa irregularidade no ritmo narrativo e alguma colagem excessiva da tradução ao castelhano original, algo que, aparentemente, é difícil de evitar. Será de as línguas serem tão próximas e portanto ser mais difícil detetar a contaminação? Da pouca experiência dos tradutores dada a relativa escassez de traduções portuguesas de obras originalmente escritas em espanhol? Não faço ideia. Mas não é a primeira vez que encontro, em livros vindos da língua de nuestros hermanos, um certo tom acastelhanizado que destoa das palavras portuguesas do texto. É pena. Mas mesmo assim, este livro vale plenamente o tempo despendido na sua leitura.

Este livro foi comprado.

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