Se Estados do Vácuo é um exemplo de uma obra de ficção científica que é incontestavelmente parte da vasta (bem mais vasta do que alguns gostariam) família da literatura, Dori Bangs (bibliografia), uma história completamente diferente dessa, é, não obstante, outro.
Começa este conto de Bruce Sterling como um relato factual, quase histórico, sobre duas personalidades da cultura americana que na vida real morreram cedo. Lester Bangs foi um crítico musical, morto de overdose acidental de remédios para a tosse aos 33 anos; Dori Seda foi uma cartunista, pintora, ceramista e autora de BD, morta de complicações de uma gripe aos 37 anos. Na vida real, os dois nunca se conheceram, mas o que Sterling aqui faz é imaginar o que poderia ter acontecido caso um e outro tivessem escapado às respetivas mortes prematuras e continuado a viver. No linguajar da ficção especulativa, Sterling cria e explora parcialmente uma linha temporal alternativa, com base em dois pontos de divergência relacionados com a saúde dos protagonistas.
Com isso constrói uma história-homenagem mais que um pouco sombria, dedicada especialmente a Dori. Na linha temporal criada, Lester e Dori encontram-se, têm uma relação tumultuosa, casam (daí o Dori Bangs do título), têm um casamento igualmente tumultuoso e, entre sucessos e falhanços, vão vivendo até acabarem por conhecer o destino de toda a gente, já em pleno futuro, século XXI adiante. Tudo isto servido com a prosa enérgica de Sterling, bem conhecida por qualquer leitor familiarizado, ainda que vagamente, com o ciberpunk, pois Sterling foi determinante na definição do estilo típico do movimento e influenciou fortemente um par de gerações de autores. E tudo servido, também, por personagens fortes e tridimensionais, repletas de qualidades e defeitos.
E também servido pela quebra de um dos paradigmas mais constantes das obras de ficção: a ficção, também ela, de que o que está escrito corresponde de alguma forma a um acontecido. Não existe aqui necessidade de suspender a descrença, pois Sterling avisa logo a abrir que o que escreve nunca aconteceu, e volta a fazê-lo no fim. É uma fantasia, escreve-nos ele, sublinhando um facto que todos conhecemos quando lemos ficção mas raras vezes nos é assim explicitamente afirmado por quem a escreve. E isto, meus caros, faz também com que este conto seja indubitavelmente literário e de ficção científica. Só para tirar de vez as dúvidas que pudessem ter persistido após o de Landis.
Se o conto no fim de contas é bom, perguntam? É sim senhor.
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