Há um tipo de história que, suspeito, os escritores gostam muito mais de escrever do que os seus leitores de ler: histórias sobre escritores, as suas crises existenciais, as suas dúvidas e inseguranças, as suas relações com outros escritores. São quase sempre histórias com uma percentagem de umbigo razoavelmente elevada, isto é, histórias em que a personagem-escritor é um alter-ego pouco disfarçado do escritor-escritor. E deixem-me sublinhar que não estou a falar no ar: eu próprio sou culpado de ter cometido uma história destas, portanto sei o que leva alguém que escreve a fazê-lo: O Deus das Gaivotas. Essa história, escrita em parceria com o meu pai, tem uma personagem rebelde em luta com o escritor que a escreve, e se a personagem rebelde é quase toda do meu velhote, o escritor é quase todo meu.
Serve isto principalmente para explicar que não sou imune à atração que o tema exerce e por isso talvez não seja o mais comum dos leitores quando chega a hora de pensar sobre uma história desse género. Pois é precisamente o que As Energias do Amor (bibliografia) é.
Mas embora o tema seja comum, as roupagens de que se reveste são as mais variadas. O conto das duas gerações de Candeias é uma espécie de exercício fantástico metaliterário. Já Kathe Koja, por seu lado, fez ficção científica. O seu protagonista é um escritor (naturalmente) frustrado (e há tantos neste tipo de história), que está obcecado com uma obra inacabada de um outro escritor, já falecido, ao ponto de se ter decidido a acabá-la, para o que se depara com um problema bicudo: não a compreende bem.
Mas estamos no futuro, e há solução: basta-lhe contactar o falecido, pois neste futuro que Koja nos apresenta existe a possibilidade de criar, antes da morte, uma cópia fiel da personalidade do futuro morto, armazenando-a em computador para poder interagir com os fãs. É um processo caro e raro, e por isso o falecido não está integralmente acessível a toda a gente, o que cria mais uma dificuldade ao nosso protagonista. Escritores, especialmente os frustrados, não costumam ser lá muito abonados. É principalmente isso o que faz mover a primeira parte da história: as iniciativas que o protagonista desenvolve para obter um contacto o mais completo possível com o seu ídolo. A segunda parte é principalmente sobre literatura, especificamente sobre o conteúdo que ela pode ter, e também sobre os limites da existência.
Nunca tinha ouvido falar de Kathe Koja, tendo só depois de ler esta história ficado a saber que é escritora com mais de duas décadas de carreira sólida, mas gostei do que li. É um conto inteligente e bem escrito, embora julgue que se prolonga um tudo-nada em demasia, o que fez com que não me tenha enchido propriamente as medidas. Mas sim, por aqui está aprovada.
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