Renascimento (bibliografia), de Nancy Kress, não é propriamente um conto sobre renascimento. É um conto profundamente literário, mais um, muito bem escrito de uma forma sinuosa que vai entregando ao leitor a informação necessária para compreender a história sem lha enfiar à pressão goela abaixo com os famigerados infodumps de demasiada FC (e não só), mostrando que Kress tem um domínio invulgar do ritmo e da construção narrativa.
E sim, trata-se de ficção científica, ainda que durante boa parte do conto nem pareça muito. Há referências oníricas a criaturas mitológicas, nomeadamente grifos, há questões financeiras e guerras familiares causadas em parte por essas questões, há uma gravidez atípica, pois o bebé é um ser único, humano mas alterado por engenharia genética como nenhum outro. No fim, há um pouco de terror anunciado. Não há é personagens simpáticas. Pelo contrário, é cada uma mais antipática que as outras, dos pais da criança que parecem muito mais interessados em dinheiro e na fama que advém da originalidade do rebento do que no futuro deste, à protagonista-narradora, mãe e sogra daqueles, uma insuportável dondoca de sociedade, cínica, sarcástica e hipercrítica com tudo e todos, e que importa que seja frequente ter razão na crítica? Quem goste de se identificar com personagens é capaz de passar aqui um mau bocado, pelo menos se tiver boa opinião de si.
Como não é propriamente identificação o que eu procuro na literatura, essa parte pouco me afetou. O conto é realmente bom, complexo, bastante bem escrito e melhor concebido, uma crítica à forma superficial e egocêntrica com que tantas vezes se decide trazer crianças ao mundo. E um aviso contra a tentação de aplicar de forma irresponsável as potencialidades das ciências da vida. Aprovado.
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