sábado, 20 de julho de 2013

Lido: Accelerando

Accelerando, de Charles Stross, é aquilo a que se costuma chamar "romance em mosaicos", ou "coleção de histórias interligadas". Trata-se de uma obra de grande fôlego e maior escopo que, em nove histórias interligadas, descreve a evolução da sociedade futura, tanto pré como pós singularidade tecnológica, acompanhando para isso a família Macx ao longo de várias centenas de anos... se bem que ao fim de algum tempo o próprio conceito de ano comece a perder substância.

Para quem não sabe, o conceito de singularidade tecnológica está no cerne das crenças transumanistas. A expressão designa aquele momento em que a maquinaria inteligente criada pelo Homem suplanta o seu criador em termos de capacidade intelectual. Há quem ande a prever o surgimento para breve da singularidade tecnológica há pelo menos duas décadas, e houve escritores de FC que construíram boa parte da sua obra em volta do conceito (notavelmente Vernor Vinge).

E é disso que Stross aqui fala, num livro que muitas vezes (talvez demasiadas?) pende para algo de semelhante ao ensaio, deixando um pouco de lado a história, ou as histórias, que está a contar. Será necessário, pois os conceitos são múltiplos e complexos, desde os intrincados pormenores da especulação económica intermediada por algoritmos sofisticados com que o primeiro protagonista, Manfred Macx, põe em marcha toda a revolução que se vai seguir, até ao desmantelamento de sistemas planetários inteiros com o objetivo de criar maquinaria inteligente e aumentar a área de absorção de energia solar, passando por muitos outros detalhes, por muitas outras ideias. Mas o certo é que o foco nas ideias cria algumas fragilidades ao enredo e a outros aspetos da criação literária.

Muitas dessas ideias não são bem novas na ficção científica ou até da especulação tecnofuturista. O desmantelamento de sistemas planetários está na base da ideia das esferas de Dyson e de outras megastruturas que vêm surgindo na FC desde há várias décadas a esta parte. A mistura ciborgânica, do homem com a máquina, também é velha de décadas. A nanotecnologia idem. Uma rede de intercomunicação através de buracos de verme aspas. A noção de upload de mentes para redes informáticas igualmente. E por aí fora. Mas Stoss consegue aqui combinar todos estes elementos, e mais alguns, num livro vertiginoso, com uma densidade de informação invulgar, e cheio do bom e velho sentido de maravilha que se associa à FC.

A história propriamente dita acaba por ser uma história de sobrevivência. Do princípio ao fim, há sempre qualquer coisa a acossar as personagens, a impeli-las à ação, a levá-las a dar passos que em retrospetiva acabam por parecer inevitáveis. Nisso, este livro é inteiramente transumanista: consultem os sites transumanistas que há espalhados pela web e verão como a singularidade é apresentada na maioria (e não digo em todos porque não conheço todos) como algo de inevitável, como consequência lógica e frequentemente desejável do progresso tecnológico corrente.

Também é um livro bastante típico de ficção científica na unidimensionalidade até das personagens principais. Macx, em particular, nunca muda, mesmo apesar de começar o livro como um homem como todos os outros para o acabar transformado em padrões múltiplos de personalidade, exemplares capazes de se ramificar e de voltar a reunir-se e de viver ora em simulações informáticas, ora em corpos especialmente cultivados para o efeito. Não é credível? Não, não me parece que seja, e não é só nesse detalhe que este livro exige mais da suspensão da descrença do que muitos outros. E aí, quanto a mim, reside a sua maior falha.

Mas os acertos são mais. A história contada é fascinante. As ideias que traz e, mais do que as ideias, a forma como elas são misturadas e fundidas, geram uma experiência de leitura única, auxiliada por uma prosa ágil e razoavelmente sofisticada. E há aspetos na história que são credíveis, alguns demasiado, alguns até de forma assustadora. Só para dar um exemplo, algoritmos de especulação económica existem mesmo no mundo real, e há pessoas muito inteligentes e bem informadas a pensar que são um dos fatores na base da catástrofe económica em que a economia de casino mergulhou o planeta há cinco anos com os resultados que se conhecem.

O conjunto, portanto, é bom. Bastante bom mesmo. Não creio que chegue ao patamar da excelência, mas não anda longe.

Claro, não é livro para toda a gente. Quem goste acima de tudo de personagens não irá sair satisfeito da leitura. Quem não tenha uma base sólida de conhecimento tecnológico irá atravessar longas passagens sem conseguir retirar delas grande coisa a não ser confusão. Accelerando é um livro exigente, mesmo para leitores habituais de ficção científica, e não me parece que seja aconselhável a leitores pouco familiarizados com o género, a não ser que possuam outro tipo de bases que lhes permitam compreendê-lo.

Mas se conseguirem compreendê-lo, irão andar com a cabeça a zunir durante bastante tempo. E isto é um elogio.

Este livro foi obtido gratuitamente na Feedbooks. E continua disponível, aqui.

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