Não sei bem que livro será mais aconselhável como introdução à escrita de Thomas Pynchon, mas suspeito que este Arco-Íris da Gravidade será dose demasiado pesada para iniciar a maioria das pessoas, e falo não só em sentido figurado mas também num sentido muito literal: a edição portuguesa é um mastodonte de 1021 páginas de linhas longas e razoavelmente apertadas e quase quilo e meio de peso, e esse gigantismo reflete-se na estrutura do próprio romance, o qual contém um imenso conjunto de personagens, várias das quais desaparecem por completo ao longo de centenas de páginas para reaparecerem de repente mais tarde, aparentemente caídas do céu por não terem unhas.
Não há grande complexidade na história básica (uma busca, entre os últimos anos da II Guerra Mundial e os anos subsequentes à guerra, de uma arma secreta alemã, um misterioso aparelho chamado schwarzgerät, o qual estaria instalado num foguete V2 com um número de série especial), mas as ramificações dessa história e tudo o que Pynchon decide somar-lhe transformam o romance num autêntico labirinto.
Leitores e estudiosos com muito mais paciência (e tempo disponível) do que eu já se dedicaram a escalpelizar detalhadamente todo o manancial de influências, temas, piscadelas de olho, detalhes estruturais, trocadilhos e jogos de palavras e dezenas de eteceteras que o romance contém, portanto só falarei aqui de algumas coisas muito básicas e de um punhado de ideias que a sua leitura me deixou. É livro que dá para teses de doutoramento em literatura; isto é uma opinião pessoal de leitura num blogue.
O livro divide-se em quatro partes. A primeira, com as suas 238 páginas, já tem o tamanho de muitos romances e desenrola-se em Inglaterra, mais especificamente em Londres em pleno Blitz. Esta primeira parte define o tom do romance, centrando-se numa investigação, levada a cabo pelos agentes de uma agência de guerra psicológica, sobre a relação existente entre os pontos de impacto das V2 alemães e os locais dos encontros sexuais daquele que é, pelo menos na aparência, o protagonista do romance: Slothrop, um agente secreto americano e que parece ter capacidades premonitivas. Já aqui, como se vê, surge pelo menos a sugestão de algo de fantástico, algum piscar do olho, até, à ficção científica, mas o tom do texto acaba por ser muito mais alucinatório ou onírico do que concreto. E irónico, e sem tabus, e por aí fora. Pós-moderno, em suma.
A segunda parte que, com meras 132 páginas (também muitos livros há que são mais curtos do que isso) é a mais breve das quatro, tem lugar ainda durante a guerra, num casino situado na Riviera francesa, região já libertada pelas forças aliadas, para onde Slothrop é enviado por motivos que nunca chegam a ficar claros (de resto, a falta de clareza é uma constante no livro todo), e onde a sensação mais relevante é a de uma imensa paranoia. De novo temos episódios que tanto podem ser encarados como alucinatórios quanto podem ser vistos sob o prisma do fantástico ou até, de raspão, da ficção científica.
A terceira parte é de longe a maior das quatro, com as suas 450 páginas, e consiste de uma infindável deambulação do Slothrop pela Alemanha destruída do pós-guerra enquanto procura o tal schwarzgerät e vai encontrando umas personagens bizarras atrás das outras (sendo ele próprio uma das mais bizarras), numa multiplicidade de episódios que continuam a mostrar o mesmo caráter alucinatório que se encontra em partes anteriores, interrompidos frequentemente por canções. Foi esta parte do livro que mais contribuiu para a impressão geral que ele me deixou, como de resto é natural dada a sua extensão.
Por fim, a quarta parte conclui o livro com mais 192 páginas. Esta é a parte mais complexa de todas. São várias as personagens que tínhamos perdido de vista durante centenas de páginas e reencontramos aqui, o romance ganha uma não-linearidade bastante intensa, pois não só Slothrop é assaltado por alucinações (ou episódios de presciência, talvez?) que nos levam a, entre outros sítios, uma distopia fascista futurista, a parte do romance em que ele roça mais claramente na ficção científica, como mais tarde a ação se transfere para os anos 70, entrecortada por numerosos regressos aos tempos da guerra. Tudo isto salpicado por histórias aparentemente laterais a todo o enredo, cada uma mais bizarra do que a outra e todas elas mais ou menos fantásticas. Slothrop desintegra-se numa espécie de loucura paranoica e alucinada, numa dissolução pessoal que espelha em grande medida a dissolução social e económica que o rodeia.
Eu respeito bastante o que Pynchon tentou fazer aqui. O tema da desintegração pessoal, ligado à desintegração social provocada pela guerra, qualquer guerra, a sugestão de que tempos enlouquecidos promovem a loucura individual, é algo que me parece muito bem sucedido neste livro ao mesmo tempo que ressoa comigo, ou seja não só respeito como gosto. O mesmo se passa com uma irreverência generalizada, que percorre todo o livro, uma ironia corrosiva que procura subverter tudo. Outras coisas há de que não gosto por aí além, mas respeito na mesma, em especial o labirintismo do enredo, o imenso novelo de pontas que Pynchon deixa soltas durante páginas e mais páginas e mais páginas para voltar a amarrar (nem sempre de forma particularmente definitiva, há que dizê-lo) mais à frente. Mas isto tem uma forte ligação a algo de que definitivamente não gosto.
É que acabo a leitora com a sensação de que o livro podia ter pouco mais de metade das páginas que tem sem que com isso se perdesse grande coisa. Não foram raros os momentos, em especial naquela interminável terceira parte, em que interrompi a leitura e fechei o livro, farto de mais uma deambulação irrelevante, de mais um diálogo que nada acrescenta, de mais uma nota de paranoia a somar-se a dezenas de outras. Assaltado por uma intensa sensação de que não estava a obter nada da leitura, de que estava apenas a perder tempo.
Juntando a isso uma omnipresente temática metafísica, que costuma dizer-me pouco ou nada, uma tradução que ora tem momentos de puro génio (e não o digo só para ser simpático; há soluções de tradução verdadeiramente geniais), especialmente nos muitos poemas que pontilham o livro, ora se perde numa selva de eles e elas e seus e anglicismos semânticos (as genialidades mencionadas acima levam-me a suspeitar que isto aconteceu por falta de tempo para fazer uma revisão cuidada; traduzir um livro destes é trabalho duríssimo e muito demorado e eu nem invejo o tradutor nem lhe censuro realmente as falhas, digo apenas que elas acabam por ter o seu impacto na experiência global de leitura) e também, porque também tem relevância, uma experiência física de leitura francamente incómoda (experimentem segurar durante muito tempo num livro com quase quilo e meio de peso), o resultado é um daqueles livros a que reconheço a qualidade mas cuja leitura me deu comparativamente pouco. Não posso dizer que não tenha gostado, globalmente, mas este livro de Pynchon ficou muito, muito longe de se transformar num dos meus livros preferidos. Seja como for, não é livro para ser compreendido por inteiro à primeira, portanto decerto que tem facetas que me passaram despercebidas. Não sei é se algum dia voltarei a ele; a vida é mais curta que comprida.
Este livro foi comprado.
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