domingo, 26 de agosto de 2018

Lido: Azul Cobalto e o Enigma

Quando um escritor escreve contos integrados numa série, em especial se se destinam a ser publicados de forma dispersa, em revistas ou antologias, uma das coisas mais difíceis que tem de fazer é encontrar um ponto de equilíbrio na informação que fornece aos leitores sobre o universo ficcional, que lhe permita nem aborrecer aqueles que já conhecem as obras anteriores e portanto já estão familiarizados com as suas regras, nem deixar às aranhas aqueles que estão a contactar pela primeira vez com o universo. É uma arte delicada, tanto mais que diferentes séries e até diferentes obras terão necessariamente pontos de equilíbrio divergentes, dependendo do grau de afastamento da realidade ficcional relativamente à realidade consensual, do grau em que cada história específica se contém em si mesma, do grau de desenvolvimento pretendido para as personagens, e por aí fora.

Gerson Lodi-Ribeiro nem sempre o fez bem: em algumas das opiniões que fui deixando aqui na Lâmpada expressei a ideia de que ele tendia a exagerar para o lado da explanação a leitores novos, o que tinha como consequência que aqueles que já conheciam as histórias anteriores do mesmo universo ficcional acabavam por ser sujeitos a alguma informação redundante, o que reduzia o impacto das histórias novas. Mas neste Azul Cobalto e o Enigma (bibliografia) parece-me que acertou em cheio na dose.

Trata-se de uma história longa, uma novela, integrada na série dos Três Brasis. Nesta série, o Gerson mistura a história alternativa com o vampirismo científico, postulando a existência de uma segunda espécie inteligente no planeta, uma espécie naturalista de vampiro, sem nada de sobrenatural, cujo último espécime conhecido se alia, na época do Brasil colonial, aos escravos revoltados de Palmares e estes aos invasores holandeses do nordeste brasileiro, funcionando como agente secreto, sabotador e assassino dos palmarinos, e ajudando assim a criar uma linha temporal alternativa na qual aquilo que conhecemos hoje como Brasil é dividido em três estados: Palmares, a Nova Holanda e o Brasil propriamente dito, que aqui corresponde apenas à metade sul (mais coisa, menos coisa) do país.

A grande maioria dos contos desta série passa-se no passado, à boa maneira da história alternativa, desenvolvendo e explorando o universo ficcional alternativo gerado com a presença do "filho-da-noite", como é conhecida a sua personagem, tida como último representante da espécie. Azul Cobalto e o Enigma é uma das raras exceções, tendo lugar num futuro indeterminado (ou talvez no presente, visto que uma das características desta linha temporal alternativa é um desenvolvimento tecnológico mais acelerado do que na nossa realidade, em grande medida propulsionado pelas potências sul-americanas) em que a humanidade já se espalhou pelo espaço, com colónias em estações orbitais e estações de pesquisa tripuladas em locais tão remotos como Europa, o satélite de Júpiter.

E o enredo é no essencial uma caçada. É que os serviços secretos brasileiros têm há muito a ambição de se livrar da constante dor de cabeça que o filho-da-noite encarna, e finalmente chegaram ao ponto em que a evolução tecnológica é capaz de contrabalançar as vantagens biológicas de que o agente palmarino sempre dispôs. Portanto, quando as informações disponíveis permitem localizá-lo, passam ao ataque. A história é, portanto, movimentada, cheia de peripécias e de guinadas no enredo, com várias surpresas, bastante bem concebida e bem escrita, pese embora uma certa pegada pulpesca. Uma história bem contida em si própria, capaz de fornecer novas camadas aos leitores que já conhecem a série e o seu ambiente e personagens, mas sem por isso deixar de fornecer uma experiência rica aos recém-chegados a este universo ficcional.

E no final, que fica razoavelmente em aberto, oferece pistas para eventuais continuações da série, agora em ambiente bem mais relacionado com a ficção científica pura e dura (tal como esta história, de resto) do que com a história alternativa que predominava de início. Tudo muito bom. Julgo que esta é uma das melhores histórias do Gerson Lodi-Ribeiro, autor de uma das mais extensas obras da FC lusófona. E, naturalmente, também do livro em que se insere.

Contos anteriores deste livro:

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