sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Lido: Kapapa

Antes de começar a escrever este texto estive a puxar pela memória, tentando lembrar-me se alguma vez tinha lido alguma coisa de José Luandino Vieira. É autor que tem presença há muitos anos na biblioteca dos meus pais, e por isso conheço-lhe bem o nome de o ver a passear-se pelas estantes cá de casa. Até me lembro de ter ido com os velhotes a um ou dois lançamentos de livros seus na biblioteca cá da terra. Mas não me consigo lembrar se esse conhecimento superficial do autor chegou alguma vez a transmutar-se em conhecimento de alguma obra sua até ao momento em que li Kapapa. Não consigo mesmo.

Mas sei que o texto deste livro não faz soar campainhas na lembrança, não do texto propriamente dito, que isso seria sempre altamente improvável (até porque, como vem escrito na ficha técnica do livro, "esta narrativa faz parte do romance Águas-do-Mar, o Guerrilheiro, inédito por incineração"), mas de estilo literário. E isso leva-me a concluir que provavelmente terá sido este o meu primeiro contacto com a prosa de Luandino.

Trata-se, pelo menos aqui, de uma prosa muito elaborada, muito poética, ajoujada sob o peso de tantas imagens, num português salpicado de termos africanos não sei ao certo de que língua ou línguas, mas provavelmente do kimbundo, ou não fosse o Luandino luandino se não de origem (nasceu em Portugal, em Vila Nova de Ourém) pelo menos de coração. Esta tensão entre o português e as línguas de Angola é o que está subjacente ao conto (pois de conto de trata, mesmo sendo extrato de romance incinerado; este é um daqueles livrinhos com tema marítimo publicados em formato muito reduzido por ocasião da Expo'98, e tem 50 páginas) e a resistência do protagonista à influência da língua europeia serve como espelho do colonialismo e da luta de libertação do povo de Angola, ou não tivesse estado o próprio Luandino profundamente empenhado nessa luta.

Em pano de fundo, uma trama marítima (na qual o mar se metamorfoseia em rio e vice-versa), pois o protagonista é pescador e parte para o mar desconhecido no seu barco de pesca, onde é confrontado com uma tormenta. Uma tormenta tão alegórica como tudo o resto, pois a referência é a luta de libertação de Angola e a forma como cada indivíduo, cada angolano, a ela reage — ou não fosse essa epopeia marítima pessoal fundida ao longo do conto com cenas de guerrilha propriamente dita. E eu, apesar de ter compreendido a ideia geral (acho) e de simpatizar com a ideologia subjacente, não gostei particularmente do conto. Convenhamos também que não pertenço ao público-alvo: o público a que este texto se destina é angolano e eu sou português, faltando-me portanto o conhecimento sobre os mais que muitos termos angolanos que Luandino usa, o que tornou o texto, a espaços, quase totalmente impenetrável. A prosa poética já por si tende a exigir mais do leitor do que a prosa objetiva; quando está repleta de termos desconhecidos, então...

Mas exemplifiquemos para perceberem do que falo. Escolhendo mais ou menos ao calhas, a páginas tantas (11) lê-se o seguinte: "As águas vungutavam, a canoa já dava de dançar, aproada; saltei, ximbiquei só de passar aqueles sete dibucos, ondas de senga do baixio até a canoa ficar menguenando no princípio do mar [...]" Percebem? E o texto é todo mais ou menos assim. Imagino que para um angolano com este substrato linguístico (que nem todos o têm; diferentes zonas de Angola têm diferentes línguas nacionais e nem todas sequer são línguas bantas) isto faça pleno sentido; para mim, português, faz muito pouco.

Este livro está disponível gratuitamente no site do Instituto Camões, aqui.

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