segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Lido: Maelstrom

Na opinião que deixei ao primeiro livro desta série de Peter Watts, Starfish, queixei-me de que a ficção científica tendeu demasiado, ao longo da sua história e pesem embora algumas exceções relevantes, a ignorar o mundo submarino quando comparado com as regiões exteriores ao nosso planeta. E saudei esse livro por ir contra a corrente. Tinha portanto a expetativa de que este Maelstrom continuasse na senda do livro anterior, dedicando às regiões submersas da Terra a atenção que lhes é devida.

Pois enganei-me.

Maelstrom retoma a história onde Starfish a deixou e, embora no primeiro post eu tenha conseguido não deixar spoilers quase nenhuns, a partir daqui isso torna-se impossível. Estão avisados? Querem mesmo assim continuar? Então vamos lá.

No fim de Starfish, quem tem poder para isso decide tomar uma opção drástica para tentar conter a infeção da nossa biosfera pelos organismos da biosfera abissal, designados como ßehemoth, pois, segundo as conclusões da investigação, não fazer nada, deixar os simbiontes à solta, iria causar uma catástrofe à escala global. E a contenção terá de ser rápida: é que análises ao sangue dos tripulantes da estação de monitorização mostram-nos já irremediavelmente contaminados. A solução? Fazer-se explodir um engenho nuclear perto da estação e, portanto, da dorsal Juan de Fuca, garantindo assim que nenhuma daquelas pessoas, nada que esteja contaminado, voltará algum dia à superfície. Mas aquelas pessoas não são nem passivas nem estúpidas, muito menos ingénuas; pelo contrário, tudo nas suas vidas as dotou de doses substanciais de paranoia, e o plano falha.

Porque os aquanautas fogem. Talvez não todos (não fica claro), mas pelo menos dois, e em particular um, a protagonista do livro (e da série, aparentemente): Lennie Clarke, uma mulher vítima de abuso, tornada anfíbia para sobreviver nas profundezas, o que acaba por dar uma inestimável ajuda à sua sobrevivência, com uma abordagem muito niilista ao mundo que a fez como fez mas com uma inabalável determinação em sobreviver. Essa determinação leva-a a vir dar à costa Oeste da América do Norte, onde a situação geopolítica já não é a que temos hoje (o futuro de Watts é profundamente distópico, e já o era antes mesmo da emergência ecológica ser declarada) e a geográfica também não, pois a explosão em Juan de Fuca desencadeou um gigantesco terramoto acompanhado de tsunami, que arrasou e alterou profundamente a costa pacífica da América do Norte. De qualquer forma ela seria irreconhecível, pois está transformada numa gigantesca zona de ninguém onde se acumulam milhares e milhares de refugiados vindos da Ásia e do Pacífico, em sobrevivência precária.

O gigantesco campo de refugiados está isolado do resto do continente, mas Lennie Clarke é uma mulher cheia de recursos e, auxiliada pelo seu equipamento anfíbio, escapa, penetrando pelo território do nosso Canadá dentro, contaminando todos os lugares que toca. E não é ela o único vetor do cataclismo, pois o ciberespaço de Watts é uma autêntica selva de IAs virais, todas a procurar sobreviver e multiplicar-se enquanto se defendem e escondem dos bots e dos operadores humanos que tentam identificá-las e eventualmente exterminá-las, e um dos principais vetores do romance é o que vai acontecendo no Maelstrom, um redemoinho de organismos cibernéticos, descendente longínquo (ou talvez não tão longínquo assim) da internet que hoje temos, onde Lennie Clarke se transforma em meme, usado por uma linhagem de vírus para se multiplicar mais eficazmente, o que vai ter como consequência que os agentes encarregados de a apanhar para controlar a disseminação do ßehemoth ficam praticamente cegos.

E o romance é isso: uma caçada em que Lennie Clarke é simultaneamente presa, caçadora e vetor de catástrofe, ao mesmo tempo inocente e culpada, celebridade involuntária quando se torna absolutamente por acaso ícone da contracultura, da contestação ao status quo. É essa caçada que serve de motor ao romance, mas a ela junta-se uma elaboração do universo ficcional tão detalhista como seria de esperar da ficção científica mais dura e uma reflexão muito interessante sobre a moralidade do assassínio seletivo para a (incerta) salvação de milhões e os dilemas a que uma decisão dessas pode levar quem tem necessidade de a tomar.

Simultaneamente, a construção do futuro de Watts também tem vastos motivos de interesse. O paralelismo que ele faz entre a evolução biológica e a muito acelerada evolução dos sistemas virais de software é fascinante, faz pensar e podia perfeitamente ser usada para ensinar a ligação que existe entre o acaso, as mutações e a sobrevivência dos mais aptos, e a própria tensão entre a biosfera normal e aquela que a invade com o surgimento do ßehemoth tem aspetos interessantíssimos, em especial para leitores ligados de uma forma ou de outra às ciências biológicas (como é o meu caso).

Em suma, este é outro livro de ficção científica bastante bom, e de que gostei bastante apesar do meu desapontamento com o abandono quase completo dos espaços subaquáticos em prol de ambientes mais comuns na FC em geral e no ciberpunk em particular. E sim, tal como o volume anterior também este está disponível para download ou leitura, em vários formatos, no site do autor, sob a mesma licença Crative Commons. Toca a ler.

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