sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Cenas da escrita

Quando a vida me deixa algum tempo livre e me aparece uma dessas coisas à frente, gosto de ler com um sorrisinho irónico ao canto dos olhos aqueles conselhos muito sisudos (ou às vezes, nos melhores dos casos, nem tanto) que escritores de que muitas vezes nunca ouvi falar dão a escritores ainda mais obscuros do que eles, ou àquela massa que se limita a ter ambições.

(Emparentesando, eis outra coisa que me dá vontade de rir, isto das ambições literárias. Mas adiante. Desemparentesemos.)

Importância, não lhes ligo nenhuma. O único conselho realmente válido que se pode dar a alguém que escreve ou queira escrever é este: nunca dês importância a conselhos de escrita. Porque as pessoas são todas diferentes, os escritores são todos pessoas, logo os escritores são todos diferentes. O que resulta para um não resulta para o do lado e vice-versa. Cada qual tem de descobrir o seu próprio caminho. Aliás, escrever é isso mesmo: descobrir um caminho. E quem acha que o achou está acabado como escritor. Muitas vezes antes mesmo de começar.

Não, importância não lhes ligo nenhuma. Mas acho-lhes piada. Porquê? Por causa daquilo que revelam acerca da personalidade de cada um desses conselheiros.

Normalmente, a primeira coisa que tais listas de conselhos me dizem é que quem as faz se acha muito mais importante do que na realidade é. Mas não é isso que mais me interessa — até porque aí há tão pouca variedade que o interesse sofre logo. O que mais me interessa são as motivações, que quando não vêm claramente expressas vêm sempre nas entrelinhas, que levam cada um a passar longas horas em frente de um papel, real ou virtual, e aí empilhar palavras.

São milhentas.

Há quem retire do manuseio da língua um prazer de malabarista.

Há quem seja apenas ego e só procure admiração.

Há quem — no estrangeiro, quase só no estrangeiro, em especial na América; a maior parte dos portugueses têm alguma consciência das realidades do seu país — queira enriquecer, sonhe com contratos cinematográficos e listas de best-sellers.

Há os mesquinhos, que procuram pequenas vinganças, arrasar os desafetos.

Há quem se esconda atrás da escrita como de máscaras.

Há quem se transborde na escrita, revelando até o que não sabia conter.

Há quem procure escrevendo entender o mundo.

Há quem procure escrevendo entender-se a si próprio.

Há...

Pronto, basta. Vocês já entenderam. Todos os escritores são diferentes. E não são só os seus caminhos que são diferentes; o ponto em que começam também.

E há alguns que são mais ou menos como eu. Eu escrevo porque tenho a cabeça cheia de histórias, que em geral não me largam até que as passe a escrita. Não importa se as ideias são boas, se são más, se são assim-assim: ou as escrevo, ou me levam a azucrinar o juízo anos a fio. Tenho histórias na cabeça há décadas. Normalmente as mais complexas, as mais difíceis, as que exigem mais trabalho, disponibilidade e atenção. Porque as mais simples, as mais rápidas, aquelas que se baseiam em ideias que até nem são grande coisa ou que provavelmente alguém já teve antes, algures, essas escrevo depressa, vejo-me livre delas, liberto-me. É muito por isso que tenho tantos contos escritos e só um romance, e que mesmo este é bastante curto. É por isso que muitas das minhas histórias são coisinhas pequenas e despretensiosas, provavelmente insignificantes. E é também por isso que além das cerca de quarenta histórias que tenho ido publicando, há por aqui outras tantas que nunca viram a luz do dia. Porque publicar não é o mais importante. Na verdade, nem necessário é. O motor de tudo é a necessidade de libertação.

Sim, há alguns escritores que são mais ou menos assim. Mas, ou os que o são não têm por hábito andar por aí a dar conselhos aos outros, ou então são uma pequena minoria entre os colecionadores de palavras. E isso nem é bom nem mau, apenas é.

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