segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Os números verdadeiros sobre a mudança ortográfica

A regra mais básica para quem quer discutir as coisas com um mínimo de seriedade é não falsificar dados. Logo a seguir na escala das regras indispensáveis vem esta: não selecionar os dados que convém, fingindo que os outros não existem. Vem isto a propósito de uma senhora de nome Maria Regina Rocha, que parece que é (ainda será?) consultora do Ciberdúvidas e que terá feito um "estudo", muito publicitado pelos opositores à modernização ortográfica (ver aqui), onde pretensamente "prova" que a tal unificação ortográfica, longe de unificar a ortografia, aumenta a divergência.

Segundo ela própria afirma, chegou a tal fantástico resultado pegando nas tabelas do Vocabulário da Mudança e contando, manualmente, os casos em que a grafia converge ou diverge. Não todos, note-se. Só aqueles que, segundo ela, não são em número "residual" ou não afetam principalmente a grafia brasileira. E os caturras entraram em euforia, julgando que lhes foi dado de bandeja um bom argumento.

Acontece que, como afirmei aqui, a unificação ortográfica de que se fala e se pretende é passar a haver um único documento a definir a ortografia do português, no lugar dos dois atualmente existentes, não passarem todas as palavras a escrever-se da mesma forma em todo o espaço lusófono. É isto que é claramente afirmado no anexo publicado em conjunto com o Acordo Ortográfico de 90 no Diário da República portuguesa. Ver aqui.

Mas mesmo assim, eu sabia que os números da senhora eram aldrabados. Sabia que, ao contrário do que ela afirma, existe, de facto, uma convergência ortográfica e que não é pequena. Calculava que ela estaria algures nos tais casos "residuais" que ela ignorou, mas a verdade é que não tinha dados concretos.

Portanto fiz o que qualquer pessoa com um mínimo de boa fé faria: fui eu próprio tratar os dados.

Como não sou um completo nabo, não fiz as contas à mão. Saquei as tabelas do Vocabulário da Mudança e importei-as para uma folha excel. Depois, recorrendo a umas quantas fórmulas muito simples, comparei a ortografia portuguesa pré-AO (a que o Vocabulário chama "Ortografia Antiga (1945)"), a brasileira pré-AO (ou "Ortografia Antiga (1943)") e a moderna. Soube assim quais as palavras que tinham ortografia divergente, quais as que a tinham igual, e quais as que hoje têm grafias múltiplas. As palavras que tinham ortografia divergente incluem tanto a ortografia totalmente divergente (casos em que só se usava uma forma em Portugal e outra diferente no Brasil), como aqueles que eram parcialmente divergentes (casos em que a antiga ortografia brasileira tinha dupla grafia). De seguida verifiquei quais os casos de convergência (isto é, quais as palavras cujas grafias eram divergentes e que passaram a grafar-se da mesma forma), quais os casos em que grafias antigas divergentes são hoje grafias múltiplas, e quais os casos de divergência (ou seja, em que grafias anteriormente idênticas passaram a duplas grafias).

Gastei nisto cerca de duas horas.

E os resultados, sem nenhuma surpresa, são completamente contrários às conclusões da Maria Regina Rocha.

Ei-los:
  • O Vocabulário da Mudança contém um total de 6573 vocábulos
  • Entre esses, contam-se 3703 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas (ou, em raríssimos casos, triplas). Na sua grande maioria são casos em que a prática anterior não muda.
  • Contam-se 1421 casos de grafias anteriormente idênticas que continuam hoje a ser idênticas (mas diferentes das anteriores).
  • Contam-se 1228 casos de convergência, grafias anteriormente diferentes que passaram a ser iguais.
  • Contam-se 221 casos de divergência, palavras que anteriormente se escreviam de forma igual mas passaram a aceitar dupla grafia.
Exato. Leram bem. A convergência bate a divergência com uma vantagem de mais de cinco para um.

Portanto, o "estudo" da sra. Maria Regina Rocha não passa de uma fraude. Uma fraude que pretende apoiar a oposição à nova ortografia com base em números inventados e em disparates.

Ou seja: nada de novo no reino dos caturras.

PS - posso fornecer a folha excel a quem a pedir, bastando para tal que me indiquem um endereço válido de email.

PPS - este estudo pode ser refinado com um tratamento mais sofisticado da tabela. Tenciono levá-lo a cabo, na medida do tempo que tiver disponível. Se tiverem sugestões sobre dados interessantes, sou todo ouvidos.

5 comentários:

  1. Segue logo à noite. Isto está feito de maneira que só eu entendo, vou ter de organizar a coisa um bocadinho melhor. :)

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  2. E... seguiu. Para o endereço do gmail.

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  3. O problema está nas consoantes mudas. Esse é que é o ponto crítico, o que tem gerado mais controvérsia. E nesse aspecto Maria Regina Rocha tem razão, com muita pena minha. É impressionante o número de palavras que passam, com o acordo, a ser escritas de maneira diferente.

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    1. Não é verdade. Se ler o resto da análise verificará que no global das consoantes mudas são muito mais as palavras que passam, com o acordo, a ser escritas de igual forma do que as que passam a ser escritas de maneira diferente.

      O único caso em que realmente se dá divergência é quando a consoante que tende ao emudecimento é o P. Em nenhuma outra situação isso acontece.

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