A Feira dos Assombrados é uma novela de José Eduardo Agualusa, muito ancorada no realismo mágico latinoamericano, sobre um caso insólito que o autor situa em finais do século XIX na cidade angolana do Dondo, que à época não passaria de uma simples vila: o rio, o Quanza, começa a trazer cadáveres. Afogados. Às dezenas.
O que faz mover a narrativa, aparentemente, é o mistério. Quem serão aquelas pessoas? Ou até: tratar-se-á mesmo de pessoas? Ou haverá naquele estranho sucedido alguma mão sobrenatural, de espíritos ou demónios, de coisas ímpias? Agualusa explora a tensão gerada por essas dúvidas, servindo-se de um elenco de personagens tão castiças que até chegam a incluir um bode mensageiro que se apresenta quase humano. Sempre mantendo o realismo mágico ao alcance de uma frase, conservando sempre a sugestão do irreal, do fantástico, como uma possibilidade muito concreta, ainda que nunca inteiramente explícita.
Mas o mistério só na aparência é o fulcro desta história. Ou, pelo menos, digamos que o é num primeiro nível de leitura. Escavando mais fundo, o que aqui encontramos é um retrato da vida e das figuras humanas características de uma vilazinha do interior de Angola colonial de há cento e poucos anos, com as suas estruturas de poder centradas no administrador português e no padre católico, com as suas rivalidades, com a sempre presente desigualdade de base entre brancos e pretos e os mulatos de permeio. No fundo, o retrato de um ambiente em determinado momento socio-histórico, no qual as superstições cruzadas e algo enlouquecidas que os afogados trazem à tona se integram organicamente.
E um retrato bastante bem feito, cheio de subtilezas e subentendidos mas ao mesmo tempo muito claro.
Quanto ao mistério... bem... se eu vos dissesse se ele chega, ou não, a ser resolvido iam cair-me em cima aos gritos de "spoilers", não é? Melhor ficar calado. Afinal de contas, na literatura, como na vida, alguns mistérios acabam por obter resposta esclarecedora enquanto outros têm de contentar-se em permanecer misteriosos por tempo indeterminado. Por isso, resta-me acrescentar algo que julgo já ser óbvio:
Gostei. Não assim muito, não daquele gostar de cair de quatro e boquiabrir-me de espanto e admiração, mas sim, gostei.
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