quinta-feira, 5 de março de 2020

Isaac Asimov: O Sorriso que Rouba

Apesar de ter sido em geral uma pessoa progressista, Isaac Asimov não é propriamente um autor imaculado no que toca às relações com as mulheres, e sabê-lo acrescenta uma camada de algum desconforto à leitura deste conto. Pois O Sorriso que Rouba (bibliografia) é uma história onde, nas entrelinhas, assoma a violência doméstica. Não que Asimov fosse culpado de tais práticas, pelo menos que se saiba. Mas exerceu, tudo o indica, outras formas de abuso. Quais? Bem, digamos que era muito liberal com os lugares onde punha as mãos...

Alegadamente...

Este conto é, claro, mais uma história em que surge o demónio Azazel. Ou por outra, é e não é, pois do demónio propriamente dito não aparece nem sinal; esta é apenas uma história contada pelo (extraordinariamente arrogante e vaidoso) homem a quem o demónio faz favores, sobre mais uma obra demoníaca cheia de boas intenções que terá originado efeitos secundários inesperados e desastrosos.

A situação é a seguinte: uma mulher anda perturbada porque o marido, que ela vê como carinhoso e amantíssimo, nunca aparece nas fotografias com aquela expressão que ela tanto adora. E o vaidoso, que tem um fraquinho por ela, resolve requisitar o demónio para lhe dar uma mãozinha e capturar a tal expressão numa fotografia. Consegue, naturalmente. Mas vem-se a perceber que captura mais do que isso e o marido de amantíssimo passa a abusador.

O que é realmente perturbador é a reação da mulher. A inventar desculpas para os abusos, enquanto vai minguando em tristeza. A atribuir culpas a si própria. Uma reação demasiado comum, na verdade. E é necessária uma intervenção externa para voltar a colocar tudo nos eixos; é preciso que o vaidoso tenha um ataque de decência e remorso e decida recuperar a fotografia e destruí-la. Coisa que a mulher não perdoa.

Convenhamos que para um conto curto cuja ambição primordial é ser divertido, este Sorriso que Rouba tem entrelinhas poderosas. E digo-o mesmo sem ter gostado lá muito de o ter lido.

Contos anteriores deste livro:

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