O Arranca Corações é um delicioso romance de Boris Vian protagonizado por Jaimemorto (Jacquemort no original francês, vejam só, um nome traduzido porque, lá está, o texto o aconselha), um psicanalista que chega a uma peculiar aldeia cheia de gente não menos peculiar, que ele tenta ao longo de todo o romance, sem sucesso nenhum, psicanalisar.
Tudo neste livro é bizarro. Há nele fartura de fantasia, há também bastante surrealismo, uns toques de onirismo e até vestígios de ficção científica. Jaimemorto, na sua busca infrutífera por alguém a quem psicanalizar no meio daquela gente do campo que lhe aparece tosca e bruta, vai conhecendo as mais significativas personagens da aldeia, começando por uma família que é central em todo o livro.
É esta composta por um homem, Ângelo, que depressa desiste e se vai embora, a sua mulher, Clementina, prestes a dar à luz, no que é ajudada por Jaimemorto, que depois também fica mais ou menos encarregado de ajudar na educação das crianças (afinal de contas, é psiquiatra, não é? Tem de perceber de crianças), as próprias crianças, um trio de "javardos", dois que são gémeos (Noël e Joël) e um terceiro bebé que, apesar de ter nascido no mesmo dia dos outros, não é gémeo deles (sim), Citroën. Fica a família completa com uma criada, Cubranco (ah pois! Culblanc no original francês), a quem o nosso bom protagonista faz o sacrifício de dar quecas regulares e desprovidas do mais ténue sinal de romantismo. E, fora da família, Jaimemorto também acaba por ter contacto regular com o cura da aldeia, um homem desabrido, cujos passatempos preferidos são dar pancada no sacristão e insultar o seu rebanho, durante as missas e fora delas, não raro descambando tudo em épicas cenas de pancadaria.
É este o núcleo principal do livro, em especial os três miúdos e a mãe, absolutamente neurótica, com uma loucura hiperprotetora que se vai agravando com o desenrolar do romance. E os miúdos, pelo seu lado, são bizarros de uma forma quase diabólica, e usam todos os pontos fracos da mãe para sua vantagem e divertimento, quase sempre liderados por Citroën, o gémeo que não é gémeo.
Já estão a ver mais ou menos o espírito da coisa, suponho. O livro está carregadinho de ironia e de um humor bem, bem negro. A maternidade, coisa dulcíssima em tantas histórias romãnticas, sai deste livro envolta em talas e ligaduras e cheia de cortes e hematomas. Não há uma personagem agradável. Nem uma, para amostra. Todas são criaturas abrutalhadas, Jaimemorto incluído, exemplares amputados pelo menos de parte da sua humanidade. A irreverência é total e absoluta; nada é sagrado, nem de perto, nem de longe.
Eu achei divertidíssimo, principal razão do epíteto de delicioso com que praticamente abri este texto, mas tenho a certeza de que para muita gente Vian vai longe demais.
Além disso, este é um livro fantástico. Mais um motivo para ser olhado de viés por alguns leitores.
Para mim, pelo contrário, foi papo cheio. Gostei mesmo deste romance. Muito.
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