A Gargalhada
A gargalhada reverbera na pequena sala. Uma voz masculina, roufenha. Outra voz, feminina mas quase igualmente roufenha, soa na sala ao lado, trazendo consigo interrogação e censura em partes iguais.
— Já estás nessa fase, Zé? A rir sozinho?
— Estou aqui a ler uns textos velhos, do tempo da epidemia.
— Não tens nada de melhor para fazer?
— É divertido. Devias ler também. Este é dum gajo que dizia…
— Zé…
— Não, a sério, vais-te rir. Um gajo dizia aqui que a epidemia ia levar a humanidade a reaprender o sentido da comunidade e que o bem de cada um depende sempre do bem de todos. É só palavras caras. Diz ele que o indivíduo só faz sentido enquadrado no coletivo, e patati e patata. — Outro risinho. Uma pausa. — Não achas divertido?
— Não. Deprime-me. Olha, tenho aqui uma luzinha a piscar. O filtro precisa de ser substituído.
— Outra vez?!
— É o que diz aqui.
A voz que antes rira solta agora um suspiro. Exasperado? Resignado?
— Tá bem, tá bem…
O dono da voz levanta-se, dirige-se à zona de descontaminação do abrigo, enverga o fato hazmat, põe a máscara, verifica os indicadores de qualidade do ar, franze o sobrolho, ajusta a posição da máscara e dá três ou quatro pancadinhas na zona onde estão os sensores, encolhe os ombros, pega na arma e verifica as munições, põe a tiracolo a maleta com os filtros e as ferramentas, enfia no braço uma braçadeira lavada do partido, que apesar de estar lavada ainda exibe sinais das mais recentes manchas de sangue, espreita o exterior pela vigia em busca de sinais de perigo, não os vê, fecha a porta interior estanque, substitui a atmosfera limpa do interior pela contaminada do exterior e abre a porta exterior.
— Comunidade — resmunga enquanto sai para uma paisagem dominada pelas ruínas de arranha-céus semissubmersos sob o ataque incessante das ondas do mar, lá longe, atrás do fosso e da cerca eletrificada. — Coletivo. Aquela gente dos tempos da Queda tinha cada ideia…
E lá vai substituir o filtro, arrastando os pés na poeira, uma figura solitária num mundo vazio.
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