terça-feira, 21 de abril de 2020

Théophile Gautier: A Morta Apaixonada

Na opinião sobre o último conto deste livro, também de Théophile Gautier, falei um pouco sobre quem o autor foi e qual a sua abordagem literária, e sugiro que não faz mal nenhum quem estiver a ler este texto e não tiver lido esse lhe dê uma vista de olhos agora porque ajuda a contextualizar parte do que vou dizer aqui.

Nesse texto aviso que vou falar em breve "de uma das obras mais conhecidas" do romantismo. Pois bem: aqui estamos. Este A Morta Apaixonada (bibliografia) é um clássico. E percebe-se bem porquê: muitíssimo bem escrita, esta noveleta está também muito bem concebida e realizada, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo movimento, permitindo uma série de interpretações que facilmente podem ser encaradas como outros tantos níveis de leitura. E no entanto, reconhecendo tudo isto, foi-me penoso lê-la.

O mero facto de conter vários níveis de leitura basta para mostrar que a história não é propriamente simples, embora tenha elementos bastante simplórios. Um jovem, recém-ordenado padre, perde-se de amores (instantaneamente, claro; o amor à primeira vista é inevitável nestas histórias) por uma mulher misteriosa e, depois de hesitar algum tempo e acabar por ceder aos apetites, passa a viver uma vida dupla, o que lhe causa um grande peso na consciência — pelo menos quando para para pensar no que anda a fazer, coisa que nem sempre acontece — e um significativo desgaste físico. Ao leitor com alguns livros lidos no currículo não deverá ser difícil imaginar o que Gautier faz com estes elementos, e em grande medida a imaginação vai corresponder à realidade. E eis parte do motivo por que este texto custou a entrar: está carregadinho de clichés.

Há que reconhecer que não será culpa de Gautier. A grande maldição do sucesso é gerar um sem fim de imitações. Por mais inovadora que a obra seja antes de ser imitada até à exaustão, os imitadores reciclam-na de tal forma que passado algum tempo se transforma numa pilha de clichés, e o leitor, que até pode reconhecer intelectualmente o pioneirismo, acaba sempre por sofrer o efeito dessa transformação na experiência de leitura. É bem sabido que o desfrute da leitura depende até certo ponto do inesperado; quando este desaparece, desaparece com ele uma porção de prazer, porção essa que, dependendo da obra, pode ser maior ou menor.

Mas em parte até é culpa de Gautier, porque há elementos nesta história que já eram clichés quando ela foi escrita. O amor romântico, por exemplo, instantâneo e arrebatado (e arrebatador), motivado por um mero olhar. Ridículo. Claro que a história vai muito além disso, e por isso é clássica, uma história paradigmática de um género. O facto de o protagonista ser padre, por exemplo, e a sua amada uma criatura das trevas, uma morta-viva, uma vampira que se alimenta e de certa forma sobrevive da vida dele, permite a Gautier transmitir o que pensa sobre o pecado, a tentação, as mil e uma formas de perdição. O contraste da vida dupla do protagonista, o austero padre diurno e o libertino noturno que desfruta alegremente de tentações exóticas, e a tensão que esse contraste gera, permitem-lhe também matutar um pouco sobre a tensão sociológica que esses mesmos contrastes causam na sociedade em geral, na qual a amada representa também um papel alegórico de estrangeiro com os seus próprios costumes em choque com os mais pacatos costumes locais.

E as referências, alusões e possibilidades interpretativas não se ficam por aqui. A história é complexa e está bastante bem escrita. É boa literatura, não há disso a menor dúvida. Mas com o meu gosto literário colide com alguma violência. Acontece-nos a todos uma vez por outra, quer nos demos conta disso, quer não.

Textos anteriores deste livro:

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