quinta-feira, 2 de abril de 2020

Kevin J. Anderson: Hopscotch

Muitos histórias de ficção científica, provavelmente a maioria, começam a sua existência com uma pergunta de aparência muito simples: "E se?" Não é só na FC que esta pergunta se encontra, atenção: ela aparece com regularidade em qualquer faceta das artes narrativas, sempre que haja alguma forma de ficcionalização. Mas na FC e em géneros próximos ela é absolutamente fulcral. E se a pergunta for "E se num futuro indeterminado, mas talvez relativamente próximo, fosse possível trocar de corpo quase tão facilmente como se troca de camisa?" é bem possível que o resultado seja este Hopscotch, de Kevin J. Anderson.

Mas ser possível e ser inevitável são coisas bem diferentes. Uma ideia destas pode ser desenvolvida de formas muito distintas e resultar até em histórias quase diametralmente opostas. E é por isso mesmo que dar toda a primazia à IDEIA, mesmo assim em maiúsculas, que é tendência de algumas pessoas ligadas à FC, é uma perspetiva francamente redutora do que pode ser e muitas vezes é uma obra criativa em geral e literária em particular. Sim, a ideia é importante, mas o seu desenvolvimento é tão ou mais importante do que ela.

Neste romance, o tom é algo juvenil. Trata-se no essencial de um romance de formação, não centrado numa personagem como é mais vulgar, mas em quatro, um grupo de amigos, todos órfãos. O romance começa quando eles se preparam para sair do orfanato e enfrentar o mundo lá fora, cada um à sua maneira.

Um tem uma deficiência que é ao mesmo tempo uma qualidade: é incapaz de trocar de corpo, mas consegue identificar sem erro qual é a identidade que se encontra no interior de cada corpo específico. É que as regras mandam que sempre que se dê uma troca esta fique registada nuns chips que toda a gente é obrigada a ter, para que não haja dessincronias entre quem habita um corpo e quem o mundo exterior julga habitá-lo, mas nem todos cumprem as regras. Há quem não sincronize a identificação, o que constitui crime. E há quem procure apanhar criminosos, naturalmente, para o que a habilidade deste coprotagonista é extremamente útil.

Outra é alguém que procura um sentido para a vida, alguém que tem necessidade de se integrar, de pertencer a qualquer coisa maior que ela. Uma ingénua influenciável, incapaz de ver a maldade humana ou de compreender todas as consequências de estilos de vida, e com uma certa queda para o transcendente.

Outro é um artista, sempre em busca de alguma forma de revelar as verdades que sente necessidade de colocar no mundo sobre a natureza humana, a natureza da vida no seu tempo, a natureza de ele próprio. Um espírito inquieto, numa procura incessante por qualquer coisa, quer enquanto a sua arte não lhe deu o suficiente para viver, quer depois de começar a dar. E para isso troca sucessivamente de corpo, tentando perceber como é viver como outras pessoas, todos os tipos possíveis de outras pessoas.

E o quarto é um despreocupado que faz o que precisa de fazer para sobreviver, e se o que precisa de fazer é alugar o corpo a quem queira pagar-lhe por isso, pois que seja. Há formas piores de ganhar a vida do que aguentar durante algumas horas ou dias as dores de corpos velhos ou doentes ou a dor de parto de mulheres que preferem não passar pela experiência.

Todos são bastante ingénuos, todos vão tropeçando vida fora sem uma rede de apoio que vá além da velha amizade que os une, ou talvez a palavra mais adequada seja irmandade apesar de eles não serem realmente irmãos. E é isso, a amizade, o tema principal do romance. A amizade e o que se está disposto a fazer por ela, as coisas que a desenvolvem ou corroem.

Uma das maiores frustrações deste livro vem um pouco daí. A ideia de base da troca de corpos dá tanto pano para mangas que Anderson podia tê-la explorado de forma bastante mais profunda, mas preferiu ficar-se pelo tom juvenil e algo superficial. Ou talvez o problema seja outro, talvez seja ter-se perdido nas várias ramificações da ideia sem realmente explorar nenhuma delas por completo. Ou talvez seja a desconexão dos protagonistas com o leitor (ou com este leitor, pelo menos), que nunca chega realmente a formar uma ligação com eles, nem que seja de compreensão ou empatia.

Por outro lado, não se pode dizer que não seja livro que até se lê bem. É uma aventura de ficção científica juvenil sem nada de transcendente, com uma boa ideia que não é lá muito bem aproveitada, mas deixa-se ler bem. Literatura de entretenimento, basicamente, que passa longe da melhor FC que por aí anda mas serve para passar algumas horas razoavelmente entretidas. Razoável, ora cá está a palavra certa; é isso o que este livro é.


Este livro foi um presente de uma amiga.

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