domingo, 13 de junho de 2021

Frank Herbert: Filhos de Duna

Eu leio habitualmente vários livros em simultâneo. E quando digo "vários" é mesmo vários; raro é o período em que não estejam em leitura à volta de uns 10. É certo que a maioria tende a ser livros de contos, que leio conto a conto por vezes com intervalos longos entre uma história e a seguinte, mas não é incomum haver misturados com os livros de contos três ou quatro romances ao mesmo tempo.

A consequência evidente desta forma saltitante de gerir a leitura é cada livro demorar significativamente mais tempo a ficar lido do que quando a leitura é sequencial. Principalmente quando se trata de livros de contos, pois aí os intervalos entre uma sessão de leitura e a seguinte tendem a ser maiores. Mas também quando se trata de romances. Não é raro demorar mais que um mês, ou até que dois, a ler um livro que de outra forma se leria numa semana ou até menos.

O que é raro — raríssimo, quase inédito — é demorar praticamente um ano.

Mas foi isso o que aconteceu com este Filhos de Duna (bibliografia). Sim, é certo que esse ano foi pródigo em acontecimentos que me afastaram da leitura, como de resto o insucesso em cumprir os mínimos do meu próprio projeto leiturtuguento o atesta sem deixar margem para dúvidas. Mas mesmo assim... não é bom sinal.

A grande questão, creio, é Frank Herbert se afastar neste livro, tal como de resto já tinha feito no segundo volume da série, daquilo que mais me agradou em Duna. Este romance original é um livro em que há jogos de poder, e bastantes, mas estes têm lugar sobre um pano de fundo francamente interessante, com uma cultura bem estruturada, entrecruzada com uma ecologia específica, um protagonista dilacerado, em luta sobretudo consigo mesmo, além de mais uma série de detalhes que o romance introduz para tecer uma tapeçaria rica e multifacetada. É isso o que transforma o livro num dos grandes clássicos da literatura de ficção científica. E os tomos subsequentes da série não o são porque disso pouco resta.

O que temos aqui é um livro que, bem espremido, daria para uma novela de cem páginas, não para o calhamaço de mais de 500 que na realidade é. Um livro tão parado que até eu, que não sou propriamente o leitor mais apreciador de ação, nada tendo contra, por princípio, longas páginas de literatura contemplativa, que até eu acho demasiado parado. Um livro em que as questões ecológicas que giram em volta dos vermes de Arrakis e dos seus desertos têm uma importância fulcral em termos de base narrativa mas são tratadas pela rama. Um livro em que é demasiado óbvio que o que interessou a Herbert foi sobretudo a exploração da ideia do kwisatz haderach, i.e., a capacidade sobre-humana de ter acesso à memória genética de cada indivíduo, e das suas consequências. Isso e a luta pelo poder — e pela sobrevivência — que lhe vem associada.

É um livro bastante filho do seu tempo, na verdade. Publicado originalmente em 1976, está muito imbuído de ideias direta ou indiretamente ligadas aos movimentos razoavelmente místicos da época. Ia falar em hippies, mas hesitei, porque não é bem isso. Claro, o misticismo nunca deixou de estar no fulcro de toda a série. A droga que dá acesso a estados de consciência não só alterados mas sobre-humanos é o grande motor dos acontecimentos do primeiro livro, e todas as linhas de enredo relativas à presciência e às seculares maquinações destinadas a ganhar acesso a um grau de controlo sobre o futuro que só uma capacidade profética realmente potente poderia conferir são desde o início parte fulcral de todo o universo ficcional que Herbert cria. Mas no primeiro livro esses elementos estão rodeados de outros, em número e com relevância suficientes para a impressão que fica ser de uma riqueza muito maior do que a que este romance deixa. Especialmente para quem nem os aprecia por aí além, como é o meu caso.

Os protagonistas da história são Leto e Ghanima Atreides, irmãos gémeos, filhos de Paul Atreides, o Muad'Dib, protagonista do primeiro volume da série. Ambos têm acesso total às memórias genéticas dos antepassados, tal como a tia Alia, a protagonista do segundo volume, em cujas mãos estão as rédeas do poder em Arrakis: é a regente, governando em nome de Leto. Mas ao contrário desta, os irmãos são capazes de controlar as vozes internas, evitando assim o estado de marioneta — aquilo a que na mitologia prevalecente se designa por Abominação — em que a tia caíra. Entretanto, no feudalismo planetário do universo de Herbert raro é o poder, mesmo aquele que se limita a um potencial futuro, que não vem associado a ameaças. Consequentemente, a vida dos gémeos corre perigo; um perigo que não vem apenas da tia, ansiosa (ela ou a personalidade que a domina) por se livrar da condição de regente para assumir por completo o controlo, mas também de inimigos de outras casas nobres.

Só que como os gémeos, apesar da sua tenra idade, têm acesso total às memórias dos antepassados e pelo menos parcial à teia de futuros possíveis, sabem perfeitamente o que se prepara e concebem um plano. E é a progressiva execução desse plano que o livro narra. O que constitui, na verdade, um dos seus principais pontos fracos.

É que um dos principais motivos de interesse da literatura centrada no enredo, como supostamente será o caso desta, é levar o leitor a envolver-se o suficiente com a história para querer saber o que acontece a seguir. Para o conseguir, o método mais eficaz é gerar em quem lê incerteza quando ao desfecho da história como um todo, ou pelo menos das sucessivas situações que os progatonistas atravessam. Ora, quando se cria personagens com poderes divinatórios totais, essa incerteza basicamente desaparece: se os protagonistas sabem tudo, vão sair por cima, inevitavelmente, o que torna pouco mais que irrelevantes as peripécias necessárias até lá chegarem. É que se é certo que há histórias cujo desfecho é conhecido de antemão mas geram no leitor a curiosidade de saber como raio se chegou ali, para o fazer é necessário utilizar truques literários bem mais sofisticados do que os que Herbert emprega. De resto, este parece muito mais interessado em tentar gerar uma incerteza quanto ao desfecho que não poderia nunca existir do que em tornar interessante o caminho que a ele leva.

E isso é um problema. Não será problema que impeça o fruir desta história para quem aprecie intrigas palacianas ou histórias fortemente apoiadas na vertente mística, mas para os outros leitores, entre os quais me incluo, é um problema sério porque lhe retira uma componente importante que poderia torná-la interessante para eles. Restaria o estilo literário. Só que o estilo literário de Herbert nunca foi bom, nem no Duna. Este é um clássico e um romance francamente bom, mas por motivos que nada têm a ver com o estilo literário; se dependesse dele mal estaríamos.

E neste Filhos de Duna, alguém com um estilo literário melhor que Herbert teria provavelmente conseguido tornar emocionante o único acontecimento realmente inesperado de todo o enredo: o modo como Leto transcende a sua condição humana para se transformar noutra coisa... uma coisa imbatível. Mas nas mãos de Herbert esse acontecimento fica... bem... creio que a melhor palavra é chocho.

Desapontante.

E depois há todas as ramificações políticas da ideia do ditador benevolente (e sê-lo-á?) que Leto parece corporizar no desenlace da história. Sim, que se há coisa que este livro tem com fartura é política. Mas isso dava para uma tese inteira e não temos tempo.

Não será necessário, mas concluo resumindo: não saí desta leitura satisfeito. Longe disso, na verdade. Sei que esta é uma opinião minoritária, mas acho este livro bastante fraco.

Mas vou ler os seguintes. Perdido por cem...

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