terça-feira, 1 de junho de 2021

Philip Roth: A Conspiração Contra a América

Ler este livro após a era Trump causa uma sensação algo bizarra e mais que um pouco inquietante. Sim, os protagonistas são outros, a época é diferente, a camada superficial do ambiente cultural dominante é quase completamente distinta. Mas a verdade é que os paralelismos são tantos e tão profundos que esta história quase soa a profecia.

De resto, isso não terá sido por acaso. O trumpismo não nasceu do nada; limitou-se a dar expressão a tendências que já existiam e estavam bem presentes na sociedade americana. Em 2004, ano em que Philip Roth publicou este romance, quem estivesse minimamente atento já via bem vivas as correntes que iriam desembocar no Tea Party apenas cinco anos mais tarde, e o trumpismo pouco mais é que o desenvolvimento dessas correntes, desabrochadas em grotesco, estupidez e crime.

Especulando, Roth terá compreendido essas tendências, e elas ter-lhe-ão feito lembrar outra época na história dos Estados Unidos em que tendências muitíssimo semelhantes se expressaram. Não sei se assim foi, mas parece-me muito provável. O passo seguinte terá sido imaginar o que aconteceria se tais tendências tivessem triunfado nessa época, e o resultado recebeu o título de A Conspiração Contra a América (bibliografia), mais um elemento que parece presciente dado que tanto na ficção como na realidade pelo menos parte dos acontecimentos são (ou há sinais de que possam ter sido, pelo menos) manobrados por interesses externos.

Outro aspeto francamente presciente, e por isso mesmo mais perturbador, é o uso que Roth faz da cultura da celebridade. Em 2004, se era já possível compreender as tendências gerais que viriam a desembocar num Trump, escolher uma espécie de Trump dos anos 30 para protagonista da viragem para o fascismo denota uma visão invulgar. E foi isso mesmo que Roth fez.

Não que não haja também diferenças significativas entre a ficção e a realidade. Ao contrário de Trump, Lindbergh não é um cretino incoerente e incapaz; é um herói popular, célebre não por apalpar misses mas pelas façanhas que fez e os recordes que bateu aos comandos do seu avião, tão célebre como ele, o Spirit of St. Louis. Um pioneiro da aviação, intrépido e ousado... mas profundamente antissemita.

Esse detalhe explica a escolha de Roth. Movido em boa medida pelo antissemitismo, o Lindbergh da vida real, se não foi declaradamente nazi andou pelo menos a namorar o nazismo, o que se pode igualmente dizer de outras personagens verdadeiras deste livro, como Henry Ford. Também aí há uma ligeira diferença face ao que acabou mesmo por acontecer, pois, no caso de Trump e dos que o rodeiam e propulsionaram, o antissemitismo é um fator menos relevante (embora exista, de uma forma contraditória, com teorias de conspiração antissemitas a ombrear com o apoio declarado a Israel) do que um racismo mais "clássico" na sociedade americana, aquele que tem como alvo todos os que ostentam um tom de pele diferente, sobretudo os negros.

A base, contudo, é precisamente idêntica. E os discursos, as opiniões, e as estratégias também são muitíssimo semelhantes. Lê-se A Conspiração Contra a América e é-se confrontado página sim, página não, com paralelos com o que aconteceu alguns anos depois do livro ser publicado. Nem sempre são paralelos óbvios, ainda que também os haja assim; mas eles estão lá, prontos para serem vistos pelo leitor atento. E é daí que vem boa parte do impacto que o livro tem.

Este é um livro que impacta, e em parte por isso poderia ter sido um livro magnífico. Mas não é. É francamente bom, mas tem — na minha opinião, obviamente — um defeito fatal que o impede de cumprir todo o seu potencial.

Esse defeito está intimamente ligado a uma escolha do autor, feita para aumentar o impacto. Roth introduz-se e à família na história, contando-a do ponto de vista de si próprio enquanto criança. Os protagonistas, além dos óbvios protagonistas históricos, são ele, o pai, a mãe, o irmão e um primo. O livro ganha assim uma intimidade e, de certo modo, uma verosimilhança que seria difícil alcançar de outro modo. Mas essa abordagem tem um problema sério: não permite fazer uma história alternativa propriamente dita, daquelas com ponto de divergência e consequências que perduram no tempo. Só permite fazer uma espécie de desvio alternativo, seguindo uma história diferente da verdadeira durante algum tempo mas regressando depois ao fluxo normal do tempo, sem deixar para trás nenhuma consequência. Porque o autor que escreve está nesta linha temporal, não noutra qualquer, portanto tem de arranjar maneira de voltar para cá mesmo que vá viajar por outra durante uns tempos. E isso não é fácil de fazer sem consequências negativas para verosimilhança de toda a história. Por paradoxal que possa parecer.

É o que acontece aqui. Na versão de realidade criada por Roth, os Estados Unidos elegem um presidente nazi, ficam quase, quase a cair no nazismo, mas depois, como que por milagre, tudo se compõe, sem que da incursão pelas trevas da história do século XX fiquem quaisquer sinais ou consequências. A experiência da família judaica americana a assistir ao crescimento do monstro, e em parte a combatê-lo, fica a meio (ou a muito menos que meio) das experiências correspondentes das famílias judaicas europeias da época. E depois de tudo, nessa versão da realidade os EUA contemporâneos são indistinguíveis dos EUA contemporâneos na realidade verdadeira.

Mas o pior é que esse regresso à normalidade e os acontecimentos que a ele levam é despachado no penúltimo capítulo, um capítulo de infodump quase puro em que o leitor se limita a assistir a uma espécie de aula de história alternativa. A família quase desaparece, o Roth-protagonista também, restam apenas os acontecimentos, a cujo desenrolar assistimos à distância. Como que assistindo a uma aula de história. Neste capítulo, completamente diferente de todos os outros, parece que Roth se farta do seu romance e procura abreviá-lo, contando rapidamente um período da história com que, se no-la tivesse mostrado, teria ocupado muito mais páginas.

Não sei porque o fez assim, e não me arrisco a tentar adivinhar. O que sei é que esse capítulo corta por completo o fluxo narrativo. Sim, é certo que este regressa no derradeiro capítulo, mas já não é a mesma coisa. O livro poderia ter sido magnífico — estava a sê-lo até aí. Mas aquele capítulo, não o estragando, e em conjunção com a inconsequência da alternativa histórica, impede-o de chegar tão longe como poderia ter chegado. Não creio, portanto, que estejamos perante uma obra-prima. Mas estamos perante um livro francamente bom, que alcança sem grande dificuldade o objetivo definido pelo seu autor: mostrar que, sim, podia perfeitamente ter acontecido e, mais do que isso, poderá voltar a acontecer.

Como vimos. E como, suspeito, ainda voltaremos a ver, que a abjeta irracionalidade trumpista pode ter sido derrotada mas está muito longe de ter morrido.

Este livro foi comprado.

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