terça-feira, 22 de junho de 2021

Mia Couto: A Derradeira Morte da Estátua de Mouzinho

Uma estátua não é um bocado de história. É a exaltação desse bocado de história, geralmente corporizada num indivíduo concreto. E é por isso que todos os protestos contra iniciativas que visam derrubar estátuas, afirmando que estão a querer "apagar a história" são essencialmente tolos. Não é apagar história nenhuma que se pretende. Pretende-se, isso sim, não exaltar bocados de história, ou personagens históricos, que possam ser problemáticos. É que a exaltação tem esse efeito secundário: esquece, deliberadamente, tudo o que possa haver de discutível no objeto exaltado, apresentando-o de uma forma imaculada, heroicizada. E tantas vezes esses objetos não merecem ser assim tratados. E tantas vezes, quando o entorno social muda e a história é realmente compreendida em toda a sua complexidade em vez de ser simplificada para efeitos de propaganda nacionalista, essas estátuas passam a ser essencialmente embaraços públicos à vista de todos. Mais vale derrubá-las, talvez, ainda que a ideia de deixá-las em pé como retrete de pombos e gaivotas também tenha a sua validade. Há uma certa poesia na visão de uma figura detestável coberta de excremento de pássaro.

Pois este A Derradeira Morte da Estátua de Mouzinho é precisamente uma crónica sobre o derrube de uma dessas estátuas. Nela, Mia Couto reflete ao seu jeito brando (pelo menos na aparência) sobre o que significa derrubar uma estátua e que impacto esse ato tem em quem a ele assiste. No caso, a estátua é a de Mouzinho de Albuquerque, oficial de cavalaria e herói do Portugal colonialista por ter comandado a captura de Gungunhana, imperador de Gaza, o último grande reino africano a cair nas mãos dos portugueses no território que atualmente é Moçambique. Que tal captura e a "pacificação" que se seguiu tenha sido pródiga em crueldades e brutalidades múltiplas e variadas é geralmente omitido, preferindo-se realçar o facto do próprio Gungunhana estar longe de ser alheio à crueldade, num muito típico olhar enviezado sobre a história. Viés que também existe do outro lado, de resto, pois Gungunhana foi transformado em herói pelos movimentos de libertação moçambicanos, o que não deixa de ser natural pela inspiração obtida no espírito de resistência de Gaza à força superior do colonizador europeu, mas também tem a sua ironia, uma vez que o próprio Gungunhana era herdeiro de um exército invasor, composto por guerreiros zulus, que submeteu pela força as tribos e povos locais a fim de formar o seu império.

Mas a crónica de Mia Couto não é diretamente sobre nada disto. Isto é pano de fundo para uma reflexão sobre as teias complexas que a colonização tece e a descolonização desfaz de uma forma que nunca pode chegar perto de ser total. É uma crónica com personagens portuguesas, órfãs de um mito que lhes impuseram e aceitaram sem crítica. O mais interessante para quem lê hoje este texto é descobrir que ele é também uma crónica sobre o Portugal contemporâneo, um Portugal que ainda se recusa raivosamente a olhar com alguma frieza e objetividade para a maior parte da sua história, refugiando-se em mitos e fechando determinadamente os olhos a tudo o que possa pô-los em causa. Não deixa de ser deprimente que assim seja. Mas que um texto datado de finais dos anos 80 possa gerar hoje reflexões deste género é testemunho da sua qualidade.

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