Falava eu aqui há muito pouco tempo sobre o subgénero da ficção científica que se dedica a reimaginar enredos e situações mitológicas sob o olhar da imaginação de base tecnológica, e por um daqueles acasos em que a leitura é pródiga eis que poucos dias depois de ler um desses contos, leio outro.
Na verdade, até o ambiente é semelhante. Tanto o conto de Ricardo Dias como esta Quimera das Cinzas Douradas de Georgette Silen se passam na Palestina, este integralmente, o outro em parte. Mas salvo esse e alguns outros detalhes, os dois contos até acabam por ser bastante diferentes.
Aqui, o substrato é profundamente judaico. Silen torna literal o conceito (bem daninho, convenhamos) de povo escolhido, postulando que os judeus do tempo de Moisés eram extraterrestres, ou talvez seres de outra dimensão, que um acidente teria deixado presos na Terra, e cujas atribulações seriam apenas um compasso de espera até que os seus conterrâneos conseguissem encontrá-los e levá-los de volta para o lugar que lhes é próprio. A terra prometida, que nesta história nada tem a ver com a Palestina. O episódio da mitologia judaico-cristã em que Moisés sobe ao topo do Monte Sinai para aí receber as tábuas da lei é transformado num episódio de contacto em que Moisés, líder de um povo abandonado há tanto tempo que se enchera de dúvidas (de resto, ele próprio as tem, pois apaixonara-se por uma humana que não poderá levar consigo e dela tivera filhos), consegue finalmente contactar os seus e recebe instruções para os preparar para o transporte. Mas claro que há um mas.
Esse mas tem a forma dos deuses locais. Outras criaturas extraterrenas, talvez extradimensionais, que vivem na Terra desde muito antes da chegada dos judeus e se dedicam a fazer prodígios para angariar seguidores. Também é ideia antiga na FC (basta lembrarmo-nos do que está na base da série Stargate, para usar um exemplo que quase toda a gente deverá conhecer), e reaparece aqui sob a forma de uma deusa que tenta seduzir Moisés e, não o conseguindo, decide seduzir o seu povo. Com sucesso.
No fim, o resultado é uma história interessante, entre a FC e a fantasia, ainda que haja nela algumas coisas que não me agradaram particularmente. Ou nada, a bem dizer. Abomino, sobretudo, as ideologias do povo escolhido, a ideia de "nós acima de todos os outros" que lhes está inerente, e as suas ficcionalizações tendem a repelir-me com alguma veemência, a menos que se dediquem a denunciá-las. É até certo ponto o caso aqui. E há também o aparecimento dos deuses locais cheirar bastante a um deus ex machina bastante literal, destinado a explicar o motivo porque a viagem de regresso ao planeta ancestral não se chega a concretizar, o que é evidente à partida dado continuarem a existir judeus no planeta Terra e não haver nenhum sinal de Silen ter em mente a criação de um mundo alternativo ao nosso.
Mas apesar de tudo isso, o conto é interessante. É um ponto a seu favor.
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