Há quem tenha uma espécie de fetiche com a absoluta originalidade, o qual começa logo por acreditar que tal coisa é possível e os autores são capazes de se desligar de toda a cultura que lhes está subjacente para produzirem algo de novo e totalmente autónomo. Imagino que para essas pessoas histórias como este I, Robot, uma noveleta de Cory Doctorow com robôs positrónicos e um estado de guerra aparentemente permanente entre a Oceânia e a Eurásia, tenham pouco valor. Afinal, os robôs positrónicos são uma criação de Isaac Asimov e só quem nunca tenha lido Orwell não percebe de imediato de onde veio o resto da ideia. E no entanto, esta noveleta venceu um prémio Locus. Oh diabo! Em que ficamos?
Ficamos, claro, na compreensão de que toda a arte (aliás, toda a cultura) é um diálogo permanente entre quem a produz e aqueles que chegaram antes e fizeram coisas antes. Neste caso, Doctorow imaginou como seria um mundo em que os estados totalitários em permanente estado de guerra de Orwell possuíssem os robôs positrónicos de Asimov. Um mundo em que os de um lado respeitassem as Três Leis (com exceções, no entanto), e nutrissem a desconfiança contra os robôs que Asimov introduziu nas suas sociedades, mas os do outro lado preferissem não só não usar as Três Leis, deixando aos próprios robôs a decisão livre sobre como agir e o que fazer, mas apostassem mesmo em ir mais além.
E ao fazê-lo escreveu uma história bastante mais profunda do que poderá parecer à primeira vista. Porque esta decisão sobre que tipo de restrições devemos impor aos nossos robôs quando chegar o momento das suas capacidades ultrapaassarem as nossas, e se devemos impor algumas restrições, é uma decisão fulcral que teremos de tomar daqui a não muito tempo, atendendo à velocidade a que a robótica e a inteligência artificial têm vindo a desenvolver-se nas últimas décadas. E convém que pensemos nisso com alguma antecedência, para ver se, por uma vez, não somos atropelados pelo futuro como tem sido hábito.
É também para isso que serve a ficção científica.
Quanto a esta história, Doctorow criou um polícia canadiano (a situação geopolítica segue aqui de perto a do 1984 orwelliano, pelo que o Canadá faz parte da Oceania), que tenta criar sozinho uma filha adolescente, depois da mulher, uma roboticista brilhante (mas muito diferente da Susan Calvin de Asimov), ter desertado para a Eurásia. Mas os adolescentes do futuro são tão incontroláveis como os do presente, mesmo os que têm pais polícias, e a rapariga vai meter-se em sarilhos e vai acabar também por meter o pai em sarilhos. O enredo superficial é algo banal, mas é muito eficaz naquilo que interessa: em servir de instrumento para a apresentação da situação, dos problemas e dos dilemas em que o autor quer pensar.
No fim fica a sensação de uma leitura com bom ritmo e cheia de sumo, cheia de matéria para reflexão. Uma leitura que não destoa numa lista de obras premiadas. Esta noveleta é realmente boa.
Este livro foi obtido no site Freedbooks, onde foi publicado com a capa da coletânea em que está incluído (Overclocked), mas onde parece já não estar disponível.
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