sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Ana Cristina Rodrigues: Ouvir Estrelas

Às vezes encontramos contos cuja inspiração é bastante óbvia, ainda que não assumida. Por vezes deparamos com outros com inspiração igualmente óbvia mas assumida. Ouvir Estrelas é destes últimos: parte de um célebre poema do brasileiro Olavo Bilac (há que explicitar a nacionalidade para que não se confunda com o nosso Olavo Bilac, que pelo menos letras de canções também terá feito), que cita em epígrafe, para desenvolver uma história de ficção científica razoavelmente contaminada de fantasia e também razoavelmente interessante.

A ideia não será totalmente original — tenho nos recôncavos das circunvalações cefálicas (calma: eu sei que o termo certo é circunvoluções cerebrais) a memória de uma história com enredo muito semelhante ao desta, mas por mais que puxe pelos fiozinhos dos axónios (calma: só puxo figurativamente) não me consigo recordar de título e autor... embora tenha ideia de que é americano. E atenção que não posso falar do conto sem spoilers. Se forem alérgicos a tal coisa, saltem já para outro ponto da internet.

Ora nesta história de Ana Cristina Rodrigues estamos num mundo futuro cheio de problemas, violência e guerra, e conhecemos um miúdo que começa a ouvir vozes, que associa às estrelas. Eis explícito o que resultou da inspiração, da epígrafe e do título. Num estilo muito descritivo mas com bom ritmo e sem cair no infodump puro e duro, a autora vai fornecendo a informação necessária, explicando como o miúdo se deixa envolver pelas vozes ou as canções vindas das estrelas, nas quais encontra um refúgio da distopia que o rodeia. Até que, numa reviravolta final, se entrega, se funde numa espécie de mente-colmeia interstelar e, juntamemte com outras crianças também dominadas da mesma forma, vai funcionar como quinta coluna para uma peculiar invasão telepática. Peculiar e bem sucedida.

O que este conto tem de melhor é a mensagem subjacente: cuidado com os falsos paraísos, cuidado com o que escolhes como escapismo, cuidado com cantos de sereia. Podes cair em armadilhas muito piores do que aquilo de que estás a tentar fugir. Basta isso para fazer com que esta história se torne interessante.

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