quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Ana Lúcia Merege: Ars Nova

Itália, mais ou menos no presente. Um jovem músico esfomeado, daqueles que ganham a vida principalmente a tocar na rua em troco das moedas que os transeuntes lhes queiram dar (e vendendo CDs), recebe a proposta de tocar para uma personagem importante. O detalhe relevante é o músico ser especialista (e grande fã) da música medieval. Ars Nova, de resto, não é apenas o título do conto mas a designação de um estilo musical da Idade Média tardia (século XIV), o qual é praticado pelo protagonista desta história e pelo seu grupo. E é esse facto que vai ser fulcral no desenrolar deste conto.

Ana Lúcia Merege conta-o bastante bem. Trata-se de um conto próximo do horror, construído a pouco e pouco e sem grandes despejos de informação, como é costume fazer-se na melhor ficção. Merege não perde tempo, por exemplo, a explicar o que raio é a ars nova. Dá as pistas necessárias para que o leitor compreenda que é um estilo de música antiga e fica-se por aí. O leitor que já sabe não tem de se aborrecer relendo detalhes inúteis sobre o que já sabe, e o leitor que não sabe e quer saber pode ir pesquisar depois de ler o conto (ou durante, se preferir). A autora fornece a informação necessária e apenas a informação necessária. O que é ótimo.

Até porque o que é mais importante é a história e a interrogação que lhe subjaz: o que estás disposto a sacrificar pela tua arte?

Alérgicos a spoilers, fiquem por aqui, sim? Os outros venham comigo.

O trabalho, que o jovem protagonista aceita, é tocar numa festa. Mas vamo-nos todos apercebendo aos poucos de que a festa não é bem o que se esperaria de algo existente no século XXI, ainda que a princípio possa parecer um simples baile de máscaras no qual os convivas fingem estar no período medieval. A realidade? São fantasmas de gente nobre morta há muito, que durante períodos breves podem regressar a uma espécie de vida e voltar a experimentar prazeres que lhes estão vedados pela sua condição. E o jovem, apesar dos avisos em contrário, apesar de várias pessoas o tentarem salvar, vai-se deixando enredar por aquele passado fantasmagórico até mergulhar nele em definitivo.

À primeira vista este conto pode parecer ser uma história de horror; tem fantasmas, tem morte, ou pelo menos uma espécie de vida em morte, tem vida em perigo. Mas não parece ter propriamente a vontade de causar medo que o terror supostamente mostra. O jovem mergulha naquela morte fantasmagórica por vontade própria. Porquê? Porque aí se sente apreciado e realizado na sua arte, ao passo que o presente o ignora. Podemos censurá-lo? A questão, subtilmente colocada, fica em aberto.

Este conto é francamente bom.

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