Não sei bem se por efeitos da tradução, se devido ao material de base, ao longo da leitura deste livro fui-me convencendo de que devia ter sido escrito algures nos anos 50, provavelmente no início da década, pelo que foi com alguma surpresa que descobri depois que na verdade a data a ele associada é 1966. E se é verdade que a data de publicação por vezes dista consideravelmente da data de realização da obra, não é menos verdade que não tenho nenhum elemento para supor que foi o que se passou neste caso, pelo que se é 66 que consta nos registos, é 66 que vale.
De James White já tinha lido alguma da sua FC médica, e tinha gostado. Apesar de haver uma certa fórmula envolvida nessas histórias, há também uma imaginação forte a funcionar, em especial na criação de biologias alienígenas bem distantes dos homens com adereços de borracha que estamos habituados a encontrar por aí.
Neste O Mundo do Abismo (bibliografia), essa faceta das ficções de White está atenuada. Na verdade, a princípio parece nem existir.
O romance começa com um torpedeamento durante a II Guerra Mundial. Um petroleiro que está a ser utilizado para outros fins, nos comboios navais que atravessavam regularmente o Atlântico, é vítima de um torpedo alemão e afunda-se. Mas os tanques são estanques, o torpedo não rebenta com todos, e o ar que os que ficaram intactos englobam faz com que o navio mantenha alguma capacidade de flutuação, nem que seja a meia água. E há sobreviventes. Na verdade, há sobreviventes que dispõem de ar e que também têm mantimentos e água. Pelo menos durante algum tempo.
Segue-se, portanto, a inevitável descrição dos desafios da sobrevivência, na esperança de serem resgatados por alguma embarcação que os descubra. Sempre no fio na navalha, na iminência de qualquer coisa correr terrivelmente mal. Mas com a determinação do desespero.
Depois, o livro salta para o espaço e o leitor fica baralhado, mas depressa começa a aperceber-se das semelhanças. O navio afundado funciona como microcosmo da humanidade num meio hostil, e no espaço deparamo-nos com uma nave interestelar, cuja tripulação tem por tarefa despertar de vez em quando de longos períodos de hibernação a fim de tratar da manutenção da nave e fazer as correções à rota que possam fazer-se necessárias. Mas algo corre mal; a hibernação não funciona como estava previsto, ou antes, não a hibernação propriamente dita mas o processo de despertar e voltar a adormecer. E eis que a nave interestelar se vê confrontada com desafios de sobrevivência muito semelhantes aos do petroleiro torpedeado. E mais semelhantes se vão tornando com o prolongamento do romance.
É que ninguém descobre o petroleiro. Mas o engenho dos sobreviventes é tal que conseguem criar no seu interior uma biosfera cíclica funcional, capaz de assegurar a sua sobrevivência por tempo indefinido. E isso vai acabar por querer dizer várias gerações, pois havia no grupo pessoas de ambos os sexos e os imperativos biológicos são os imperativos biológicos e fazem-se sentir, mesmo que um tanto ou quanto contra-vontade. Entretanto, na nave os problemas com a hibernação também vão tornar necessário transformá-la numa nave geracional para um pequeno grupo de tripulantes que ficam encarregues de a levar a bom porto enquanto os restantes hibernam.
Quando falei mais acima de microcosmo da humanidade estava não só a referir-me à sobrevivência numa minúscula biosfera quase completamente separada da biosfera original, mas também (ou sobretudo) a toda a vivência social que ser humano encerra. No petroleiro afundado há choques de gerações, há conflitos, há a formação de fações, há amizade e camaradagem e apoio mútuo, há desespero e esperança, há curiosidade e dúvida e investigação, há vida e morte e reprodução e mais morte. E por maior que seja o engenho que propicia a sobrevivência (altamente inverosímil, diga-se de passagem), a entropia é um facto do universo, e o petroleiro vai muito a pouco e pouco deixando de ser habitável, reduzindo-se o mundo daquele povo isolado e o próprio povo também.
Na nave, entretanto, na qual passamos bastante menos tempo que no navio, acontecem coisas muito semelhantes, enquanto vamos também descobrindo que afinal não se trata de uma nave isolada, mas de uma nave de comando de uma frota inteira. Num e noutro desses microcosmos, acaba por surgir uma fação que duvida da existência real do mundo exterior ou da validade da missão a que a tradição, e só esta, afirma estarem sujeitos. Num e noutro lugar, acaba até por criar-se uma separação física entre dois grupos; no petroleiro através da ocupação de tanques diferentes, no espaço pela ocupação de outra das naves da frota. White usa tudo isto para pensar um pouco sobre a evolução das sociedades humanas e sobre as causas e consequências do conflito. E isso é uma preparação para o que se segue.
Porque no fim as duas linhas narrativas encontram-se. A nave, afinal, é uma nave extraterrestre que vem a caminho da Terra, e os seus tripulantes, refugiados de uma catástrofe planetária, são uma espécie aquática que vem tentar instalar-se nos oceanos da Terra sem saber que o nosso planeta tem a sua própria civilização. E, incapazes de comunicar e sem alternativas, acabam por entrar em guerra com a humanidade para conquistarem para si o seu espaço. Mas o petroleiro afundado e a bolha humana que nele vive, porque é um grupo humano em muitos aspetos análogo dos grupos extraterrestres, e também porque os bombardeamentos submarinos o ameaçam tanto como aos extraterrestres, acaba por funcionar como ponte entre as duas espécies, permitindo finalmente uma comunicação que até aí se afigurava impossível.
O resultado é um romance que tem as suas falhas e as suas violações da verosimilhança, mas acaba por ser bastante interessante. Um romance de ficção científica social que, sem ser muito profundo, não deixa de explorar uma série de ideias curiosas.
Não é um grande livro, em nenhum aspeto, mas é um livro interessante.
Este livro foi comprado.
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