sábado, 23 de maio de 2015

Lido: O Último Anel

O Último Anel (bibliografia) é um romance do russo Kiril Yeskov que constitui uma espécie de anti-fan-fiction de J. R. R. Tolkien. Yeskov pega na Guerra do Anel descrita na trilogia do Senhor dos Anéis, e subverte-a, apresentando-nos, basicamente, o outro lado da história, o lado dos derrotados.

Existem, no entanto, diferenças entre as duas obras ainda mais significativas do que isso. Embora se possa dizer que Tolkien descreve a Guerra do Anel, a verdade é que o faz muito parcialmente, visto que se concentra fundamentalmente na viagem da Irmandade e nas peripécias que vão acontecendo a cada um (ou a cada grupo) dos seus membros, durante as quais o caos generalizado da guerra está quase sempre algo longínquo. Há, por exemplo, pouquíssimos soldados comuns na obra de Tolkien, e só não digo que não há nenhum porque já a li há bastante tempo e posso estar a ser traído pela memória (aliás, julgo que estou; surgiu-me agora de repente uma vaga recordação de soldados orcs a tentar apanhar Frodo e Sam). Tudo, ou quase, se passa entre as altas esferas, no seio dos líderes ou dos heróis.

Yeskov, pelo contrário, apresenta bastante melhor esse caos, mostrando-nos uma quantidade razoável de pessoas (ou criaturas) comuns, a tentar safar-se o melhor possível no meio da confusão, e criando no processo um ambiente mais texturado e por isso mais sólido do que o de Tolkien.

Embora ambas as histórias nos mostrem protagonistas perseguidos por forças na aparência infinitamente superiores, a história de Tolkien é no fundamental uma história de superação pessoal, ao passo que a de Yeskov é principalmente uma história de espionagem.

Tolkien também escreve uma história inteiramente maniqueísta, com o bem e o mal bem identificados e separados, até racialmente. Yeskov é muitíssimo diferente. Não só o bem e o mal de Tolkien não são, necessariamente, os mesmos de Yeskov, como o livro deste último nada tem de maniqueísta: Yeskov recusa ver as coisas a preto e branco, apresentando em vez dessa dicotomia uma série de tonalidades de cinzento, o que também contribui para a construção de um mundo significativamente mais complexo, e por isso mais interessante, que o de Tolkien.

Por outro lado, falta a Yeskov uma componente que é muito importante em Tolkien. Um dos principais interesses do autor britânico foi a criação de toda uma mitologia que, embora seja baseada nas sagas escandinavas e no folclore céltico, acaba por aparecer aos olhos do público como criação original bem sucedida. O russo, pelo contrário, não tem qualquer interesse pela criação de uma mitologia; o seu romance é declaradamente referencial e irónico, até iconoclasta (Yeskov não se limita a mudar o ponto de vista; altera também a própria história da Guerra do Anel). À para-mitologia tolkieniana contrapõe com realismo e até com um certo materialismo, apesar de este livro não deixar de ser uma obra de fantasia, visto que, por exemplo, as realizações de Mordor são apresentadas não como o resultado do poder mágico do mal (ou do bem), mas de uma civilização tecnológica e industrial, cética em relação a todas as superstições mágicas, e significativamente mais avançada do que os obscurantistas que a combatem, embora ainda primitiva para os nossos padrões.

Ou seja: O Último Anel é um livro melhor do que os de Tolkien? Será isso que estou a dizer?

Não, e digo-o mesmo não tenho gostado por aí além dos livros de Tolkien. É um livro mais terra-a-terra, é um livro mais texturado, é um livro mais sólido em termos de tridimensionalidade de personagens e ambientes, mas contrapõe a essas qualidades alguns defeitos bastante visíveis. Para começar, a própria história.

Um dos grandes predicados de Tolkien, e, julgo eu, uma das principais razões do seu sucesso, é a clareza da história. Não há dúvidas sobre que história está ali a ser contada. Não se pode dizer o mesmo de Yeskov. A história que este conta é bastante menos clara e a ideia que fica é que ao esforçar-se para conferir solidez ao ambiente e às personagens ele se esqueceu um pouco de escorar convenientemente a história.

Também no que toca à qualidade literária propriamente dita Tolkien parece levar clara vantagem. E escrevo "parece" porque, infelizmente, esta tradução, baseada não diretamente no original russo mas numa tradução espanhola cuja qualidade desconheço, e ainda por cima repleta de espanholismos, ficou muito, muito longe de me convencer. Mas mesmo muito. Ao ponto de eu não conseguir avaliar a qualidade literária de Yeskov por aquilo que li. A única coisa que posso dizer é que Tolkien é, mesmo em tradução, muito melhor, literariamente, do que esta versão portuguesa de Yeskov.

O resultado destas qualidades e defeitos é um livro que poderia ser muito interessante, em especial para todos aqueles que tenham lido a trilogia de Tolkien sem se prenderem demasiado a ela, mas que fica bastante aquém do seu potencial. Não o recomendaria a verdadeiros fãs tolikienianos, visto que Yeskov toma liberdades com a história que poderão para eles ultrapassar o limiar da heresia. Mas quem tiver uma costela iconoclasta e não tenha gostado assim tanto da trilogia do anel é capaz de gostar, em especial se conseguir fechar os olhos às falhas literárias (ou de tradução?) que o livro contém.

Para mim, foi um livro razoável. Longo, alternando trechos interessantes com outros bastante aborrecidos, com algumas qualidades fortes e alguns defeitos igualmente fortes. Mediano, portanto.

Este livro foi comprado.

2 comentários:

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